quinta-feira, 21 de abril de 2011

O mandamento esquecido

 
 A última ceia. Toda vez que leio essa narrativa de João fico perplexo diante de seu tom moderno. Nesse evangelho, como em nenhum outro, o autor fornece um retrato realístico, em câmara lenta. João cita longos trechos do diálogo e observa as influências emocionais recíprocas entre Jesus e seus discípulos. Temos em João 13-17, um lembrete íntimo da noite mais angustiante de Jesus na terra.

  Havia muitas surpresas reservadas para os discípulos aquela noite, quando passaram pelo ritual da Páscoa, cheia de simbolismos. Quando Jesus leu em voz alta a história do Êxodo, a mente dos discípulos substituiu compreensivelmente o "Egito" por "Roma". Que plano melhor do que este de Deus duplicar aquele tour de force naquele momento, com todos os peregrinos congregados em Jerusalém? O pronunciamento arrebatador de Jesus excitou seus sonhos mais loucos: "Assim como meu Pai me confiou um reino, eu o confio a vós", ele disse magistralmente, e "Eu venci o mundo".

  Enquanto leio a narrativa de João, continuo voltando a um episódio curioso que imterrompe o avanço da refeição. "Jesus sabendo que o pai tinha depositado nas suas mãos todas as coisas", João inicia com um floreio e, depois acrescenta o final incongruente: "levantou-se da ceia, tirou a vestimenta de cima e, tomando uma toalha, cingiu-se com ela". Na roupagem de um servo, inclinou-se e lavou a sujeira de Jerusalém dos pés dos discípulos.

  Que maneira estranha para o hóspede de honra agir durante a última refeição com os amigos. Que comportamento incompreensível de um governante que imediatamente anunciaria: "Eu o confio (um reino) a vós". Naquele tempo, lavar os pés era cosiderado tão degradante que um mestre não o exigiria de um escravo judeu. Pedro empalideceu diante da provocação.

  A cena de lavagem dos pés destaca-se ao escritor M. Scott Peck como um dos acontecimentos mais significativos da vida de Jesus. "Até aquele momento a finalidade de todas as coisas era alguém chegar ao topo e, uma vez atingindo o topo, lá permanecer, ou, mais, tentar subir ainda mais alto. Mas aqui esse homem já no topo - que era rabi, mestre, professor - subitamnete se rebaixa até o chão e começa a lavar os pés dos seus discípulos. Nesse ato único Jesus simbolicamente inverteu toda a ordem social. Dificilmente entendendo o que estava acontecendo, até os seus próprios discípulos ficaram quase horrorizados com o seu comportamento".

  Jesus pediu-nos, a nós seus seguidores, que fizéssemos três coisas para lembrá-lo. Pediu-nos que batizássemos os outros, exatamente como fora batizado por João. Pediu-nos que nos lembrássemos da refeição que partilhou aquela noite com os discípulos. Finalmente, pediu-nos que lavássemos os pés uns dos outros. A igreja sempre honrou dois daqueles mandamentos, embora discutindo o seu significado e a maneira de melhor cumpri-los. Mas hoje temos a tendência de associar o terceiro, a lavagem dos pés, com pequenas denominações escondidas nas montanhas de Appalachia. Apenas algumas poucas denominaçôes executam a lavagem dos pés; quanto às demais, toda a idéia lhe parece primitiva, rural, nada sofisticada. Pode-se discutir se Jesus pretendia entregar esse mandamento apenas para os doze discípulos ou para todos nós no futuro, mas não temos evidência nem mesmo de que os Doze seguiram as instruções.

  Mais tarde naquela mesma noite surgiu uma discussão entre os discípulos acerca de quais deles eram considerados mais importantes. Notavelmente, Jesus não negou o instinto humano de competição e de ambição. Simplesmente redirecionou-o: "o maior entre vós seja como o menor, e quem governa seja como quem serve". Foi quando proclamou: "Eu vos confio um reino" - um reino, em outras palavras, fundamentado no serviço e na humildade. Na lavagem dos pés, os discípulos haviam visto um quadro vivo do que ele queria dizer. Seguir esse exemplo não ficou mais fácil em dois mil anos.
 
Extraído do livro "O Jesus que eu nunca conheci" do Philip Yancey, ed. Vida.




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