quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Abelardo e Heloísa

 É um túmulo de mármore branco, no cemitério Père-La-Chaise, em Paris. Sob a proteção de um docel rendilhado, também de mármore, eles se encontram em sua forma definitiva, modelados pela memória, pela noite, pelo desejo.

 Deitados um ao lado do outro, em vestes mortuárias, sem se tocarem, rostos voltados para o céu, mãos cruzadas sobre o peito, sem desejo: assim um escultor os esculpiu, obediente à forma como a tradição religiosa imobilizou os mortos. Mas se a escolha fosse deles, a escultura seria outra: O beijo, de Rodin, seus corpos nus abraçados. E as palavras gravadas seriam de Drummond:

O amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor.

 Assim é o túmulo de Abelardo e Heloísa: amaram de forma apaixonada e impossível, irremediavelmente separados um do outro pela vida, na esperança de que a morte os ajuntasse, eternamente.

 O amor feliz não vira literatura ou arte. Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, As pontes de Madison, Love story - o amor comovente é o amor ferido. Diz Octávio Paz que "coisas e palavras sangram pela mesma ferida". Mas o amor feliz não é ferida. Como poderiam, então, dele sangrar palavras? O amor feliz não é para ser cantado. É para ser gozado. O amor feliz não fala; ele faz. Se escrevo sobre Abelardo e Heloísa é porque sua história é uma ferida na minha própria carne. Heloísa tinha 17 anos. Abelardo, 38. Vinte e um anos os separavam. O amor ignora os abismos do tempo.

 Abelardo (1079-1142) era apelidado de "pássaro errante". Intelectual fulgurante, figura central das discussões filosóficas em Paris, motivo de invejas, ódios e paixões. Assim Heloísa o descreve, numa carta para ele mesmo: "Que reis, que filósofos tiveram renome igual ao teu? Que país, que cidade, que aldeia não se mostrava impaciente em te ver? Aparecias em público? Todos se precipitavam para te ver.  Partias? Todos te procuravam seguir com seus olhos ávidos. Que esposa, virgem, não se terá abrasado por ti em tua ausência e incendiado em tua presença? Possuías, sobretudo, duas qualidades capazes de conquistar todas as mulheres: o encanto das palavras e a beleza da voz. Não creio que outro filósofo as tenha possuído em tão alto grau".

 Heloísa, jovem adolescente dotada de raras qualidades intelectuais, vivia em Paris, na casa de seu tio. Esse, desejoso de lhe dar a melhor educação, contratou Abelardo como seu tutor intelectual. Mas as lições de filosofia duraram pouco. Logo os dois estavam perdidamente apaixonados. E Abelardo, filósofo de rigor lógico incomparável, transformou-se em poeta. Heloísa tomou conta do seu pensamento e do seu corpo e, a partir de então, segundo ele mesmo confessa, nele só se encontravam "versos de amor e nada dos segredos da filosofia".

O tio, ao descobrir o que acontecia em sua casa, sentiu-se enganado e se enfureceu. Interrompeu as "lições" e proibiu que eles se vissem de novo. Inutilmente. A distância não apaga, ela acende o amor. E o próprio Abelardo comenta: "A separação dos corpos levou ao máximo a união dos nossos corações e, porque não era satisfeita, nossa paixão se inflamou cada vez mais".

 Mas Heloísa ficou grávida. Abelardo resolveu raptá-la e levá-la para um lugar distante. De noite, retira-a da casa do tio e a leva para a casa da irmã dele, em Pelet, distante 400 quilômetros de Paris. É lá que nasce o filho do seu amor. Casam-se secretamente no dia 30 de julho daquele ano.

 Mas, para o tio de Heloísa, o acontecido exigia vingança. Planeja, então, a pior de todas as vinganças possíveis. Contrata um bando de marginais que invadem a casa de Abelardo e o castram. Pensava ele que, assim, colocaria um fim àquele amor. Inutilmente. Continuaram a se amar pelo resto de suas vidas com o poder da memória e da saudade - até que a morte os unisse eternamente. Como no filme As pontes de Madison. Só que, no filme, o instrumento da castração não foi o ódio de alguém, mas o amor piedoso por alguém.

 Abelardo morreu aos 63 anos, em 1142. Heloísa, ao saber disso, exige para si a posse de "seu homem". Na verdade, era isso que Abelardo havia pedido. "Quando eu morrer", ele lhe escreveu, "peço-te que procure transportar o meu corpo para o cemitério da tua abadia....". E Heloísa ordenou que, uma vez morta, seu corpo fosse enterrado no túmulo de seu marido. O que aconteceu 21 anos depois.



Diz um de seus biógrafos: "Para Heloísa, não há senão dois acontecimentos em sua vida: o dia em que soube que era amada por Abelardo e o dia em que o perdeu. Tudo o mais desaparece a seus olhos numa noite profunda". Ainda hoje, decorridos quase 900 anos, os namorados visitam aquele túmulo. Talvez para suplicar a Deus que eles estejam abraçados eternamente, como em O beijo, de Rodin. Talvez para pedir que nos seja dada a felicidade de viver um amor como aquele, mas sem ter de viver sua dor. O amor feliz, sem literatura, sem fama, sem que ninguém conheça. Basta-nos a felicidade aliterária do "amor feinho", como a Adélia Prado o batizou carinhosamente. Estou certo de que era isso que Abelardo e Heloísa teriam desejado.





Fonte: As melhores crônicas de Rubem Alves

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Quero ficar depois que me for

Quero ficar depois da partida.
Quero ficar... impregnado em objetos,
no som das músicas, em cheiros.
Memórias tristes ou alegres
Quero ficar
Não quero que haja despedida...
Quem ama não se despede.
ERIVAN

Desejo, necessidade, vontade

A felicidade está em enxergar o proibido - não em praticá-lo. Sobre isso, Stendhal, grande escritor francês, tem uma passagem ótima em um de seus contos. Numa tarde de calor escaldante, uma princesa está na sacada do palácio deliciando-se com um magnífico sorbée, o sorvete da época. De repente, ela pensa: "Pena que não é pecado".

 Assim é o mundo: a noção do proibido, o impedimento de fazer algo aumenta o gosto do desejo - da mesma forma que o desejo só existe enquanto não é saciado. Desejo realizado é desejo esgotado, é desejo que deixou de existir, como escreveu um dia o filósofo alemão Friedrich Nietzsche: "O vitorioso também será derrotado pela vitória".

 Falar em pecado é impossível sem falar da virtude. O que é um pecado? É a maximização da virtude; ou seja, é a virtude exagerada. Assim, pelo excesso, uma admiração se torna inveja. A virtude do prazer, por sua vez, vira luxúria. Quando exagerada, a virtude da indignação se transforma em ira. O orgulho muda para soberba e o descanso exagerado, preguiça.

 Há uma grande diferença entre desejo, vontade e necessidade. Desejo é um impulso vital. Vontade é uma carência transitória, a inclinação em direção a algo num certo momento. A necessidade é uma urgência.

 Uma necessidade é satisfeita, uma vontade é suprida. Uma pessoa tem necessidade de comer, de beber, de ganhar a vida. Tem vontade de comer pipoca, de tomar guaraná no final da tarde, de encontrar alguém - e essas vontades desaparecem quando a carência é suprida. E o desejo é uma energia constante, aquilo que impulsiona uma pessoa, algo que ela não pode deixar de ter em seu horizonte.

 O desejo não é um estado, não é um lugar aonde eu chego. O desejo é o horizonte, aquilo que norteia, mas nunca se alcança. Como escreveu Eduardo Galeano sobre a utopia como horizonte, eu caminho dois passos em direção ao horizonte e o horizonte se afasta dois passos de mim. Caminho dez passos e ele se afasta dez passos. O horizonte não existe para que se chegue até ele, e sim para não me impedir de caminhar - o desejo é que impede que eu pare de caminhar. Por isso o desejo é imortal.

 É preciso lembrar que só os humanos são mortais, pois só os humanos sabem que vão morrer - os demais animais não lidam com o conceito de finitude e, portanto, não são mortais. Assim, os cães e os gatos, por exemplo, vivem a eternidade, dado que passam o dia como se fosse o único, enquanto sabemos que para nós pode ser o último.

 O que é a imortalidade? É um presente contínuo, um presente sem fim. Com exceção do homem, todo animal vive um presente eterno, sem a preocupação do futuro. Ele vive, portanto, a imortalidade e, assim, é imortal. Nós não. Os humanos somos os únicos animais que têm noção de presente, passado e futuro - e também os únicos animais que possuem a capacidade de se sentir idiota. Eu posso me recordar de três anos atrás e pensar: "Como eu pude dizer uma asneira tão grande pra ela?". Assim, ao me recordar disso, me sinto idiota desde aquela época até o presente momento.

 A noção de tempo anda de mãos dadas com os nossos desejos, essa energia que nos conduz, que nos dirige aos nossos horizontes. Essa energia morre conosco na hora do "descanso eterno". Por que essa expressão? Descansar do quê? Descansar do desejo incessante, pois o desejo dá vida e viver cansa. "Quem sou eu?", "o que eu quero?", "como consigo o que falta?", "estou mesmo no caminho certo?". Nós passamos o tempo todo em busca de respostas, que estão sempre no horizonte, um horizonte que jamais se atinge e, por isso, impede que eu deixe de caminhar, de procurar as minhas respostas. Só tira a própria vida aquele que perdeu o desejo, pois o desejo é sinônimo de vida.

 Vida é vibração. Átomos vibram. Somos compostos de moléculas, que são átomos em vibração. Átomos animados - sendo que anima, em latim, quer dizer alma. Por que átomos vibram? Eis uma pergunta que nem os melhores cientistas conseguiram dar uma resposta satisfatória. Mas eu tenho uma suspeita de origem filosófica: átomos vibram porque eles não podem não vibrar. Em outras palavras, vibram porque têm necessidade de vibrar.

 Note que a tríade desejo, vontade e necessidade não se separa. Vida é sempre desejo, vontade e necessidade. Assim, na morte, cessam-se os desejos, vontades e necessidades. Se é assim, por que se fala em desejo imortal? Para responder isso, é preciso entender de onde vem a palavra "morte". Morte, no grego antigo, está ligada ao termo lethos, ou seja, à ideia de esquecer, ao esquecimento. É daí que vem "letal."

Assim, quem morreu não vibra mais, não chama  atenção e, portanto, é esquecido. Por outro lado, também no grego clássico, alethos - ou não mortal, aquilo que não é esquecido e, portanto, vive para sempre - é sinônimo de verdade (ou alethéia). A verdade é eterna, não morre jamais. A verdade é a essência. A essência, por sua vez, é imortal. E a essência humana é o desejo. Por isso, ele é a minha verdade.

 E chegamos aqui a uma das questões mais difíceis para qualquer ser humano: "Qual  é a sua verdade?". "Qual é a sua essência?". No dia em que você se for, essas questões irão embora com você. O que permanecerá de você no mundo?

 Permanecerá o seu legado. Permanecerá aquilo que você ensinou, aquilo que ensignou, as marcas que deixou. Permanecerá a sua verdade e a sua essência.

Fonte: Mário Sergio Cortella

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Ficarão de fora os cães

     
Tenho um amigo que é pastor de uma comunidade protestante. Favor não confundir "protestante" com "evangélico". Contou-me sobre uma velhinha solitária que tinha como único amigo um cãozinho. Ela o procurou aflita. Havia lido no livro do Apocalipse, capítulo 22, versículo 15, que não entrarão no céu "os cães, os feiticeiros, os impuros, os assassinos, os idólatras". Que os impuros, os assassinos, os idólatras não entrem no céu está muito certo. "Mas, reverendo", dizia ela, "o meu cãozinho... A Bíblia está dizendo que o meu cãozinho não vai entrar no céu. Eu amo o meu cãozinho e ele me ama. O que será de mim sem o meu cãozinho?"

Trecho do livro "O Deus que conheço"
Rubem Alves

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A difícil separação entre infantilidade e religiosidade



 Durante os cinco primeiros anos de vida, temos que eliminar três grandes etapas do mundo mágico onde nascemos.
 Durante os primeiros 18 meses chegamos à descoberta, um tanto frustrante, de que não somos o centro do mundo.
 A maioria concordará que existem pessoas e coisas fora de nós que continuarão existindo também quando nós não vivermos mais. É somente através da longa e frustrante experiência que nos tornamos capazes de descobrir o mundo objetivo. Enquanto somos bebês, no útero materno, tudo que está ali é para nós, a mãe é uma parte de nós. Mais tarde, ao descobrirmos que o nosso choro não fabrica leite, que o nosso sorriso não produz a mãe, que nossas necessidades não provocam suas próprias satisfações, pode ser uma experiência bastante dolorosa. Só gradualmente vamos percebendo que nossa mãe é Outra pessoa, que não é somente uma parte de nós. Todas as vezes que sentimos que não vivemos plenamente nossos sentimentos, pensamentos e ações, somos forçados a crer que existem outras pessoas, coisas e situações que possuem sua própria autonomia.

 Portanto, o primeiro passo para sair do mundo mágico é a descoberta da realidade objetiva. Pode acontecer que alcancemos essa objetividade só parcialmente. Embora lentamente ampliemos esta realidade e nos tornemos capazes de nos erguer sobre nossos próprios pés e olhar as coisas que nos cercam como realidades objetivas disponíveis para nossa mente curiosa, provavelmente isso não acontecerá tão facilmente na dimensão religiosa.

 Muitos, maduros e bem-sucedidos, devem em geral tratar Deus como parte de si mesmos. Deus é o factótum  que está à mão nos momentos de doenças, revolta, exames finais, em todas as situações onde nos sentimos inseguros. E se ele não nos atende, nossa única reação é gritar. Longe de ser o outro, cuja existência não depende da minha, Deus deve ser a moldura que fixa melhor nas beiradas de minha segurança. Uma grande ansiedade, causada por conflitos internos ou externos, pode às vezes forçar-nos a regressar a este nível de religião. Esta regressão pode às vezes salvar nossa vida. Ela nos dá algo para nos apoiarmos, algo que nos mantenha unidos. Ela pode ser uma forma de religião bastante útil, mas certamente não é forma de religião madura.

 O segundo passo para sair do mundo mágico é a estrutura da linguagem. Em algum ponto, entre nossos primeiros 18 meses de vida e os 3 anos de idade, começamos a murmurar os primeiros sons que, lentamente, transformam-se em palavras, frases e no idioma. Embora seja frustrante que existam coisas que estão à nossa volta e que não nos pertencem, através das palavras podemos nos vingar, porque nossas primeiras palavras dão-nos poder misterioso sobre as coisas. Como um americano que fica excitado em descobrir que a primeira palavra que aprendeu em francês, garçon, realmente traz o copeiro até sua mesa, a criança não experimenta tanto o domínio das palavras e sim dos objetos. Leva algum tempo antes que possamos separar a palavra do objeto, e dar-lhe função simbólica.

  Não existe mais nada desse mundo mágico em nós, ao sentir que seremos salvos se orarmos todos os dias ou se, no mínimo, mantivermos o costume de rezar as três ave-marias antes de irmos dormir? Parece difícil vencer esse mundo mágico.

  Parece que dizemos: "Deus não pode fazer nada por nós agora. Fizemos o que ele pediu que fizéssemos e agora é de Deus nos recompensar". Nossas orações nos dão certo poder sobre Deus, ao invés de empenhar-nos em diálogo franco.

  O terceiro passo para sair do mundo mágico é a formação da nossa consciência
  A consciência torna-se possível através do processo de identificação. Desenvolvemos a capacidade de interiorizar certos aspectos da personalidade de outra pessoa, de fazer dos outros parte de nós mesmos. No  caso de desenvolvimento moral, assumimos os julgamentos, padrões e valores das pessoas que amamos, incorporando-os em nossa própria personalidade.

  Quando Sigmund Freud escreveu seu Futuro de uma ilusão, provocou profundamente a fé, quando disse que a religião é a continuação da vida infantil e que Deus é a projeção do desejo sempre presente de proteção
  O trabalho de Freud era curar as pessoas, quer dizer, fazê-las tornar-se mais maduras.Em seu consultório em Viena, tentou desmascarar as projeções de seus pacientes, que sofriam com sua religiosidade mas do que eram salvos por ela. O psiquiatra Rumke resumiu a posição de Freud quando escreveu:
"Quando o homem amadurece completamente, descobre
que a imagem do seu Deus, geralmente imagem paterna
de Deus, é a reencarnação do terrestre, amado e temido.
Deus é, aparentemente, nada mais do que uma projeção.
Se o que inibe seu crescimento é retirado, a imagem
dilui-se. O homem distingue o bom do mau de acordo
com seus próprios padrões. Ele  venceu  a  lembrança de
sua neurose, que era tudo o que a sua religião significava.

O que é importante neste contexto é que Freud não estava totalmente equivocado. Ele permanece neste mundo mágico e infantil, onde é tão bom ter Deus por perto quanto o confortante cobertor do Linus, na turma do Charlie Brown. Para muitos, a religião não é muito mais do que Freud a compreendeu, e para todos nós, muitas de nossas experiências religiosas são vestidas por imagens da infância. Em geral, é muito difícil dizer onde o nosso infantilismo termina e nossa religiosidade começa.

Henri Nouwen

Retrato



Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.


Eu não tinha estas mãos sem forças,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.


Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?


Cecília Meireles

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Uma rápida definição de fé

"Aprendi que fé não é aprender a manipular Deus para que minha vontade aconteça. Fé em Deus é uma decisão de enfrentar a vida com a postura, com as atitudes de Cristo. Olhar para Deus, perceber seus passos e seguir nessas pegadas e assim como Cristo, a despeito de todas as situações, enfrentar a vida com integridade"




Pr. Villy Fomin
Informativo Betesda número 11
Nov 2011

Secularização

 Todas as democracias modernas praticam a separação entre a religião e o Estado, de acordo com um marco institucional e jurídico variável. Mas, paralelamente, outro fenômeno tocou diretamente as religiões nos tempos modernos: a secularização da sociedade. Iniciada no século XIX, ela poderia ser comparada a "uma trabalho de sapa" contínuo até nossos dias, só que essa expressão implica uma vontade maléfica que na realidade está ausente da ideia de secularização. Esta significa que, com os tempos modernos, acabou-se a grande integração entre sociedade e religião, que domina em todas as sociedades tradicionais. No Ocidente, esse tempo em que a vida cotidiana, em seus atos e em sua linguagem, era por assim dizer posta sob o Sinal da Cruz, em que o poder era "de direito divino", em que os saberes eram exercidos sob a autoridade e o controle da teologia, chama-se "cristandade". Mas em outros lugares, em particular nas regiões muçulmanas, as interações e as interpretações não eram menos fortes; é possível até que a confusão entre o religioso e o político tenha sido mais substancial ainda nas sociedades muçulmanas do que na Europa cristã.

A secularização significa a ruptura dessa unidade ou dessa confusão. Um depois do outro, os marcos sociais, partes inteiras da vida cotidiana (economia, política, cultura, saúde e vida social, direito...) subtraem-se mais ou menos brutalmente, ou silenciosamente, do domínio - ou do império - da religião, constituindo esferas autônomas, "secularizadas", com um saber e práticas cada vez mais especializados. Não é uma opção antirreligiosa, é uma necessidade para passar a modernidade, e muitas vezes o processo ocorre - ainda hoje - sem que os atores se deem verdadeiramente conta de que passam para um universo secularizado: eles simplesmente necessitam dessa autonomia para preservar seu modo de existência.

 Assim, não se deve confundir a secularização com um mundo ou uma cultura "sem Deus" ou, a fortiori, "contra Deus": nos países secularizados, numerosos indivíduos podem continuar perfeitamente a ser crentes, aderir a comunidades, realizar suas assembleias e celebrar sua fé. Mas os lugares em que vivem e, principalmente, trabalham "funcionam" sem Deus, sem sinais visíveis de sua presença e sem recurso a seu nome - mas com diferenças notáveis conforme as regiões e os países: na Europa e, em particular, na França, sem ser explicitamente proibidos, esses sinais e esses recursos em público parecem no mínimo incoerentes e inadequados, mas isso é muito menos verdade nos Estados Unidos. No entanto,, globalmente, pode-se falar de cultura ou de mundo que se desenvolvem "fora de Deus", "como se Deus não existisse", nem a favor dele nem contra ele, mas na indiferença em relação a ele - e, para espíritos religiosos, essa situação é talvez mais insuportável que uma oposição à sua crença.

 Para uma boa compreensão desse tema da secularização, convém notar que o vocabulário não está claramente fixado. Para evocar a "secularização", alguns empregam o termo "laicização", ou mesmo "laicidade" (e "laico" ou "leigo" no lugar de "secularizado"). A meu ver, é melhor falar de "laicidade" para designar o marco jurídico da separação entre religião e Estado, e eventualmente de "laicização" para qualificar esse processo, ou a vontade de impô-lo quando ele ainda não vigora. Outros falam de "secularismo" em vez de "secularização", dando assim de saída uma nuance voluntarista e pejorativa à evolução das sociedades modernas no sentido da secularização. Mas, como disse, esse voluntarismo para suprimir a religião esteve em geral ausente do movimento no sentido da secularização. Ele existiu na França durante a Revolução, ou também no regime comunista do bloco soviético, em particular na Rússia comunista; e evidentemente teve efeitos destruidores, sem nunca chegar a extirpar definitivamente a religião, ou mesmo impedir sua vitalidade

Enfim, certos autores preferem evitar a palavra "secularização", porque ela sugere que a sociedade atual se tornou moderna separando-se, decerto, "da" religião, mas também "tendo como um fundo de" religião. Em outras palavras, certas formas aparentemente profanas das sociedades ocidentais - o individualismo, a separação entre a igreja e o Estado, os direitos humanos... - não seriam, hoje, nada mais que valores cristãos e/ou judaicos secularizados, tornados profanos. E portanto, de um lado, a modernidade não teria sido verdadeiramente criadora, inventora de rupturas e de novidades; de outro, ela seria assim tão profundamente ligada à história do Ocidente que a possibilidade para outros povos, que não os ocidentais, de ter acesso a ela deveria ser posta em dúvida. É impossível ir muito longe aqui nesse debate tão complexo. Digamos brevemente que, muito embora pareça difícil recusar sem mais a tese da secularização e considerar o advento da modernidade um fenômeno totalmente em ruptura com o que precede, sem raízes no passado ocidental, não vemos porque a história estaria escrita e excluiria definitivamente outras culturas do processo de modernização.


Bibliografia:
SCHLEGEL, Jean-Louis - A lei de Deus contra a liberdade dos homens Ed. Martins Fontes

sábado, 19 de novembro de 2011

Fé e consciência


Fé é obrigatoriamente uma questão de consciência. Eu entendo que os mentalmente incapazes (loucos), não têm nenhum tipo de fé - religiosamente falando - lhes falta a condição de ter uma mente sã.
 Acredito que não existe uma fé, mas, manifestações hierárquicas em grau e qualidade de crenças.
Há pessoas que precisam do mínimo para sustentarem sua fé em Deus; há pessoas que precisam do máximo da intervenção divina para alimentarem sua fé.

Considero que toda e qualquer crença é extremamente valiosa, e Deus pode, a partir desse pouco de "azeite", multiplicar, fazendo com que o crente possa galgar graus ainda mais elevados da fé.

 Desde a crença em fábulas infantis à crença em um Deus soberano, temos graus diferenciados de fé; porém a essência subjetiva que está em cada ser humano é válida, portanto, estamos falando de uma fé real, ainda que esta esteja em um grau inferior (no caso infantil).

 Penso ainda que aqueles que não esperam (ou não creem em) milagres ou intervenções constantes de Deus, e ainda assim mantém uma crença inabalável n'Ele, têm um grau mais elevado de fé do que aqueles que mendigam infantilmente a constante intervenção divina. Quem precisa de milagres pra crer em Deus ou manter sua fé n'Ele, praticam uma fé claudicante e hierarquicamente inferior.
 Esse meu conceito sobre fé e consciência precisa ser melhor formulado, em princípio temos somente uma brevíssima introdução sobre fé e consciência

                    Erivan 2011

O que Há de valioso no PÓS-MODERNISMO?

 Temos a seguir quatro coisas que o pós-modernismo diz que devemos valorizar:
(1) A interpretação não é neutra ou objetiva, como frequentemente retratamos. Todos temos conceitos que influenciam a maneira como lemos os textos. O modo como construímos nossa percepção da realidade e como ela nos foi legada influencia a leitura dessa realidade. Essa é a razão principal, entretanto, de ter a Bíblia e Deus por trás dela, nos desafiando com uma perspectiva que não está enraizado em nosso contexto e cultura. É por isso que necessitamos de uma exegese historicamente fundamentada e de uma reflexão hermenêutica em nossa leitura. Antes de confiarmos na verdade encontrada em um texto, devemos ter o cuidado de nos certificarmos de que estamos lendo da maneira apropriada.

(2) Comunidades, não somente indivíduos, têm problemas de interpretação. Porém, essa observação também abre a porta não somente para sermos mais sensíveis às leituras de uma comunidade ou de uma época específica (por exemplo a atual), mas também para considerar leituras feitas por toda a história da igreja e das comunidades que dela fizeram parte. Um dos perigos do pós-modernismo é que somente as leituras contemporâneas são analisadas. As comunidades do passado geralmente são excluídas. Mas nossa solidariedade com o corpo de Cristo através dos tempos nos alerta para não sermos tão míopes cronologicamente.

(3) É importante examinarmos determinado assunto simultaneamente de diferentes ângulos ou camadas. Cada ângulo tem seu valor. Essa observação significa que algumas discussões sobre tópicos não são unilaterais ou mono-cronológicas. Muitos dos debates teológicos atuais mostram cada lado trabalhando somente com uma camada da discussão, correndo o risco de contrapor uma camada com a outra. Em alguns casos, as duas camadas defendidas são bíblicas, portanto, a questão é como relacionar consistentemente os fragmentos nos quais cada lado se baseia.

(4) O significado de perversão e nossos meros limites humanos é dizer que nem tudo que vemos está aí pra ser visto. Quer dizer, nossas interpretações não estão automaticamente corretas, embora sejam bem intencionadas e fundamentadas metodologicamente. É por isso que a interpretação necessita de testes e de interação com a comunidade, sem falar na necessidade de um período de pausa, antes de canonizarmos uma expressão específica de doutrina. Esse movimento de "canonização", quando necessário (e há momentos em que é necessário), precisa ser feito com muitíssimo cuidado e paciência.

Voltarei a esta temática posteriormente, aguarde!

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Sete razões para ler C.S. Lewis

Um convite para ler C.S. Lewis


Certa vez, o pastor Ricardo Quadros Gouvêa foi desafiado por um estudante de teologia. O estudante queria três boas razões para ler C.S. Lewis. Gouvêia lhe deu sete ótimas razões:

(1) Porque os livros de Lewis são edificantes, ensinando muito sobre a vida de oração,
sobre o exercício de leitura da Bíblia, sobre as provações que enfrentamos na vida e
sobre o testemunho cristão;
(2) porque Lewis ensina o cristão a pensar a fé sem os obscurantismos do
fundamentalismo norte-americano;
(3) porque seus livros são agradáveis e muito bem escritos;
(4) porque ninguém melhor que ele conseguiu, no século XX, produzir uma
ficção cristã que trouxesse a riqueza de símbolos e imagens que revitalizasse a
comunicação do Evangelho de Cristo;
(5) porque seus livros demonstram o vigor do pensamento cristão em diálogo
com a cultura contemporânea em uma época em que o mesmo já é considerado
decadente;
(6) porque Lewis nos ensina como é possível escrever literatura eminentemente
cristã lida com gosto e interesse por qualquer pessoa, até mesmo por inimigos da
fé cristã, levando e infundindo em todo lugar os valores do reino de Deus; e
(7) porque Lewis mostra como é possível ser criativo e inovador na teologia, sendo,
ao mesmo tempo, fiel à Bíblia e consistente coma longa tradição do pensamento cristão.

Se essas sete razões não bastam então leia C.S. Lewis primeiro, e depois me fale o que achou.

Por que alguns sofrem e outros não?


Você me pregunta: "Por que alguns sofrem e outros não?" Essa pergunta é uma confissão. Quem faz essa pregunta é porque está sofrendo. As perguntas nascem sempre das feridas. Mas essa pergunta revela que seu sofrimento não é sofrimento comum. É sofrimento que não faz sentido. "Por quê? Por quê? Eu não mereço!" Se aos bons e inocentes fossem dados prazer e alegria e aos maus e culpados, sofrimento e desgraças,  a gente compreenderia e até acharia bom. Pois parece justo que os maus paguem suas maldades com sofrimento Toda maldade deve ser castigada. E parece bom que os justos sejam recompensados com prazeres e alegrias.

 O filósofo Immanuel Kant dizia que duas coisas o enchiam de espanto: a ordem das estrelas no céu, e o sentimento moral no coração dos homens. O sentimento moral é isto: a consciência de que há atos bons e atos maus. É essa distinção moral entre o bem e o mal que torna possível a ordem humana. Os criminosos devem ser castigados. Os bons devem ser recompensados.

  Imagine agora que o universo é uma ordem moral. Se ele é ma ordem moral, então os bons são recompensados e os maus são punidos. Se esse é o caso, somos forçados a concluir que, se alguém está sofrendo, seu sofrimento tem de ser merecido. Sofrimento é castigo por algum ato mau que se cometeu. Os discípulos de Jesus penavam assim. Eles viram um cego mendigando à beira da estrada e concluíram que sua cegueira era castigo de Deus por algum pecado dele ou dos seus pais. (Que Deus horrendo esse, que castiga nos filhos os pecados dos pais!) E foram logo perguntando: "Quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?" Mas Jesus discordou. Ele não acreditava que os sofrimentos são punição por algo mau que se fez. O Deus de Jesus não deseja que os homens sofram. Sua resposta foi: "Nem ele nem seus pais".

   Se sofrimentos e prazeres fossem distribuídos com justiça, você não teria feito a sua pergunta. Mas você sabe que isso acontece. A verdade é que muitas coisas ruins acontecem a pessoas boas e muitas coisas boas acontecem a pessoas ruins. E isso nos parece absurdamente injusto. A sua pergunta surge do seu sentimento moral. Você deseja que haja justiça. Mas o sofrimento dos bons e os prazeres dos maus nos dizem que o universo não é uma ordem moral. Os bons não são premiados e os maus castigados. Se assim fosse, seria um ótimo negócio ser bom. Há umas religiões que ensinam que, se a gente está bem com Deus, tudo dá certo. Se o sofrimento vem, elas concluem, é porque a pessoa fez uma coisa errada: não está bem com Deus. Quando as pessoas dizem, com toda a honestidade de que não são capazes: "Eu não merecia", elas estão afirmando a sua inocência. Afirmam a injustiça do seu sofrimento.

   Mas agora veja: essa pergunta só tem sentido se você imaginar que os sofrimentos e os prazeres são enviados por Alguém todo-poderoso, que toma conta do universo. Muitas pessoas acreditam assim. Elas acham que as pessoas sofrem porque Deus quer. A criancinha com câncer, o jovem adolescente que morre num desastre de carro, a pessoa que é assassinada por um assaltante, as enchentes e terremotos que tiram a vida de milhares - tudo isso Deus poderia ter evitado se ele tivesse querido. Confesso a você que, se eu acreditasse num Deus que tem prazer no sofrimento das pessoas, eu o odiaria do mais profundo do meu coração.

   Pense na vida com uma imensa roleta. Há probabilidades infinitas à nossa espera. Coisas boas, coisas más. De vez em quando acontece uma coisa boa. De vez em quando acontece uma coisa ruim. Quem é responsável? Ninguém. A roleta é cega. Não foi "Alguém", invisível, que fez com que a coisa ruim ou a coisa boa acontecesse. Foi um puro acidente - sem razões, sem explicações.

   Viver é estar jogando esta roleta, sem fim. É sempre possível que algo terrível me aconteça. Se acontecer, eu sofrerei. Mas não culparei ninguém. Sofrerei sem revolta, sabendo que Deus é inocente.

Fonte: Rubem Alves

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Deus em questão - C.S. Lewis X S.Freud

                                          Parte 1 de 4
       

                                          Parte 2 de 4
                                         

                                          Parte 3 de 4


                                          Parte 4 de 4

Escatologia e esperança


"Como pode existir uma teologia sistemática
(escatologia) que trata do futuro se este
ainda não existe?
Não seria um absurdo estudar
o inexistente?
Então mudemos o termo de 'doutrina
das últimas coisas' para 'doutrina do que
não existe', ou 'teologia da especulação', ou
do 'eu penso que vai ser assim'. poupem-nos os
escathófilos de tamanha asneira"
                                                        Erivan 2011

Segue um texto, abaixo, do teólogo europeu Jugen Moltmann. Moltmann expõe de maneira brilhante aquilo que penso ser escatologia. O escrito se encontra no livro "Teologia da esperança", e é justamente essa a proposta do autor: mostrar uma escatologia enraizada na esperança.
Boa leitura!




Qual é o Logos da escatologia cristã?

Por muito tempo, a escatologia era a "doutrina das últimas coisas", ou "a doutrina do eschaton". A compreensão "últimas coisas" englobava eventos, sobre o mundo, a história e a humanidade, que irromperiam no fim dos tempos. Entre esse acontecimentos estava a volta de Cristo em glória, o juízo universal e a consumação de reino, a ressurreição universal dos mortos e a nova criação de todas as coisas. Esses acontecimentos finais irromperiam de fora da história para dentro dela e poriam fim a história universal, na qual tudo se move e se agita. Mas, como esses acontecimentos foram adiados até o "último dia", eles, no decorrer da história, perderam sua significação orientadora, animadora e crítica para os tempos vividos antes do fim. Dessa forma, as doutrinas sobre o fim último vegetavam esterilmente nas últimas páginas da dogmática cristã. Eram como que um apêndice meio solto, que definhava em sua insignificância apócrifa. Não tinham nenhuma relação com os ensinamentos sobre a Cruz e a ressurreição, a exaltação e o senhorio de Cristo, nem eram consequências necessárias delas. Estavam tão longe delas, como uma pregação no dia de Finados está da Páscoa. À medida que o cristianismo se tornou uma organização herdeira da religião do Estado romano e, teimosamente, reivindicava para si as atribuições e pretensões do mesmo, a escatologia foi deixada, juntamente com sua eficácia mobilizadora e revolucionária da história agora vivida, às seitas entusiastas e fanáticas e aos grupos revolucionários. Enquanto a fé cristã separava de sua vida diária a esperança do futuro, esperança essa que a sustentara no princípio, e transferia o futuro para o além ou para a eternidade - apesar dos textos bíblicos que ela transmitia regurgitar a esperança messiânica futura para a terra -, a esperança aos poucos abandonou a igreja e reiteradamente se voltou contra ela nas formas mais deturpadas possíveis.

 Na realidade, a escatologia é idêntica à doutrino da esperança cristã, que abrange tanto aquilo que se espera como o ato de esperar, suscitado por esse objeto. O cristianismo é total e visceralmente escatologia, e não só como apêndice; ele é perspectiva, e tendência para frente, e, por isso mesmo, renovação e transformação do presente. O escatológico não é algo que se adiciona ao cristianismo, mas é simplesmente o meio em que se move a fé cristã, aquilo que dá o tom a tudo que há nele, as cores da aurora de um novo dia esperado que tingem tudo o que existe. De fato a fé cristã vive da ressurreição do Cristo crucificado e se estende em direção às promessas do retorno universal e glorioso de Cristo. Escatologia é "paixão" em dois sentidos, o de sofrimento e o de tendência apaixonada, que tem sua fonte no Messias. Por isso mesmo,  a escatologia não pode ser simplesmente parte da doutrina cristã. Ao contrário, toda pregação e mensagens cristãs têm uma orientação escatológica, a qual também é essencial à existência cristã e à totalidade da igreja. Por isso, existe um único verdadeiro problema da teologia cristã, proposto pelo seu próprio fim e, por meio dele, proposto à humanidade e à reflexão humana: o problema do futuro. Com efeito, aquilo que encontramos nos testamentos bíblicos como objeto de esperança é o "Outro", algo que não podemos pensar nem imaginar a partir das experiências que já tivemos e da realidade dada. Algo que, no entanto, nos é apresentado como promessa de algo "novo", o objeto de esperança que está no futuro de Deus. O Deus, de que aí se fala, não é o Deus intramundano ou extramundano, mas o "Deus da esperança" (Rm15.13); o Deus que tem o "futuro como propriedade do ser" (E. Bloch), tal como se apresenta no êxodo e nos profetas de Israel; o Deus que não podemos ter em nós, que vêm ao nosso encontro em suas promessas do futuro, a quem, por isto mesmo, não podemos "possuir", mas só ativamente aguardar em esperança. Por conseguinte, a teologia correta deve ser pensada a partir de sua meta futura. A escatologia não deve ser seu fim, mas seu princípio.

  Mas como falar de um futuro que ainda não existe e de acontecimentos vindouros aos quais ninguém ainda assistiu? Não se trataria aí de sonhos, especulações, desejos e temores, todos necessariamente permanecendo vagos e indefinidos, já que ninguém pode verificá-los?

A expressão "escato-logia" é falsa. Uma "doutrina" sobre as últimas coisas não pode existir, se como "doutrina" se entende uma coleção de afirmações doutrinárias que se conhecem a partir de experiências que podem ser repetidas e feitas por todos. O termo grego lógos se refere a uma realidade que está aí, que existe sempre e que pode ser conhecida como verdade na palavra que lhe corresponde. Nesse sentido, não é possível haver lógos do futuro, a não ser que o futuro seja a continuação ou o retorno periódico e regular do presente. Mas se o futuro traz algo de surpreendente e novo, sobre ele nada podemos afirmar, nem conhecer sobre ele qualquer coisa que tenha sentido, pois a verdade "lógica" (verdade com lógos) não pode existir no que acontece no futuro como novo, mas tão somente naquilo que é permanente e retorna regularmente. Aristóteles chega até a chamar a esperança de "sonho de quem está acordado", mas para os gregos ela é um dos males que sai da caixa de Pandora.

 Como pode a escatologia cristã falar do futuro? A escatologia cristã não fala do futuro de modo geral. Ela toma seu ponto de partida em uma determinada realidade histórica e prediz o futuro da mesma, suas possibilidades futuras e sua eficácia futura. A escatologia cristã fala de Jesus e de seu futuro. Conhece a realidade da ressurreição de Jesus e anuncia o futuro do ressuscitado. Por isso, para ela, a fundamentação de todas as afirmações sobre o futuro na pessoa e na história de Jesus Cristo é a pedra de toque para todos os espíritos escatológicos e utópicos.

Ora, se o Cristo crucificado tem um futuro em razão da ressurreição, isso significa também que todas as afirmações e juízos sobre ele necessariamente afirmam algo sobre o futuro em que deve ser esperado. Por conseguinte, a maneira como a teologia cristã fala sobre Cristo não pode ser a do  lógos grego ou das afirmações doutrinárias a partir da experiência, mas a das sentenças e afirmações da esperança e das promessas do futuro. Todos os títulos e predicados de Cristo não somente afirmam o que ele foi e é, mas implicam também afirmações sobre aquilo que ele será e sobre o que dele s espera. Todos eles afirmam: "Ele é a nossa esperança" (Cl 1.27). Pelo fato de afirmar o seu futuro como promessa para o mundo, eles orientam a fé que nele se tem para esperança de seu futuro ainda ausente. As afirmações esperançosas da promessa se antecipam ao futuro. Nas promessas está anunciado o futuro oculto, o qual, por meio da esperança que desperta, age no presente.

 As afirmações doutrinárias encontram sua verdade na correspondência, verificável, com a realidade presente experimentável. As afirmações da esperança estão necessariamente em contradição com a realidade presente e experimentável. Elas não resultam de experiências, mas constituem uma condição para que sejam possíveis novas experiências. Não pretendem iluminar a realidade que aí está, mas a realidade que virá. Não querem produzir no espírito uma imagem da realidade atual, mas levar a realidade atual a transformar-se naquilo que está prometido e é esperado. Não querem ser os caudatários da realidade, mas os portadores do fogo olímpico, em direção ao futuro. Assim, elas tornam históricas a realidade. E se a realidade é percebida como história, deve-se perguntar com J. Hamann: " Quem pode ter conceitos corretos sobre o presente, sem conhecer o futuro?"

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A Insustentável Leveza do Ser



Cena do filme
"Se o eterno retorno é o mais
pesado dos fardos, então
nossas vidas se contrapõem a
ele em toda a sua esplêndida 
leveza. Mas será o peso de fato
deplorável, e esplêndida
a leveza?"


Esse romance trata de exílio e da perseguição na antiga Tchecoslováquia e foi escrito por um homem que conheceu bem as duas coisas. O romance pondera sobre a leveza, na qual nada tem sentido, e sobre o peso da filosofia do eterno retorno, de Nietzsche.

 O ano é 1968, em Praga. Tomas é um cirurgião que adota a leveza. Ele é obstinadamente livre de todo peso, evitando rótulos e ideais. Sabina é a personificação da leveza, uma artista que, assim como Tomas, acredita no individualismo irrestrito. Tereza é o peso. Fugida de uma vida provinciana, ela acredita no ideal romântico de Tomas. Seu amor é cego - não mau, apenas pesado. Ela também tem ideais políticos em ebulição, enquanto Tomas não tem ideal algum. Quando a vida dessas três pessoas se cruzam, a viabilidade da leveza é questionada. Para os ouros qual é a nossa responsabilidade sobre nós mesmos?

Quando os tanques soviéticos avançam para acabar com a Primavera de Praga, Tomas e Tereza fogem para a Suíça. Mas Tereza decide voltar, deixando Tomas com uma escolha por fazer. Ele aceita o peso e a acompanha, numa espécie de perseguição, sem querer se envolver com comunistas ou insurgentes. É insuportável que a escolha de cada um só possa ser feita uma vez, com um único resultado possível, e que jamais saibamos no que outras escolhas teriam resultado. Esse romance, nem tanto político, e mais sobre a primazia da liberdade individual, é um elogio amargurado do indivíduo; necessário e indispensável.




Lançado em 1982, este romance foi logo traduzido para mais de trinta línguas e editado em inúmeros países. Hoje, tantos anos depois de sua publicação, ele ocupa um lugar próprio na história das literaturas universais: é um livro em que o desenvolvimento dos enredos erótico-amoroso conjuga-se com extrema felicidade à descrição de um tempo histórico politicamente opressivo à reflexão sobre a existência humana como um enigma que resiste à decifração o que lhe dá um interesse sempre renovado.


Quatro personagens protagonizam essa história: Tereza e Tomas, Sabina e Franz. Por força de suas escolhas ou por interferência do acaso, cada um deles experimenta, à sua maneira, o peso insustentável que baliza a vida, esse permanente exercício de reconhecer a opressão e de tentar amenizá-la.


Milan Kundera








Milan Kundera nasceu em Brno, na República Tcheca, em 1929, e emigrou para a França em 1975, onde vive como cidadão francês.
Romancista e pensador de renome internacional, é autor, entre outras obras, de A identidade, A brincadeira, Risíveis amores, A ignorância, A cortina e O livro do riso e do esquecimento.

domingo, 13 de novembro de 2011

Canção do suicida


Não me matarei, meus amigos.
Não o farei, possivelmente.
Mas que tenho vontade, tenho.
Tenho, e, muito curiosamente,

Com um tiro. Um tiro no ouvido,
Vingança contra a condição
Humana, ai de nós! Sobre-humana
De ser dotado de razão.

Manuel Bandeira, 1965

leitura recomendada

Suicídio - Causas, mitos e prevenção.
Hernandes Dias Lopes. Ed. Hagnos
TRECHO: "Caminhamos céleres para a autodestruição, e o foco do homem está no salvar a si mesmo. Envolver-se, proteger, livrar e cuidar são atitudes cada vez mais egocêntricas. Que importa a morte de mais um numa sociedade em que morrer violentamente, seja de que forma for, homicídio ou suicídio, é uma rotina diária na vida das pessoas? Uma anestesia emocional acometeu nossa sociedade capitalista, egocêntrica e desumanizada. Vivemos um paradoxo, pois, embora possamos produzir cada vez mais os meios de salvar as pessoas de sua enfermidade, também cada vez mais vemos o adoecimento com suas múltiplas expressões de sofrimento e dores, principalmente da alma. O suicídio, hoje, segundo os estudiosos, é uma expressão radical de uma crise de despersonificação. O mundo contemporâneo assumiu abertamente suas tendências destrutivas.
"E o que dizer dos estudos que mostram que o suicídio funciona como um estímulo a outros, principalmente numa sociedade que gera desesperança para o homem? E que considera a autodestruição como a solução para o desespero humano? (...) Além dos suicidas, existem também dois milhões de pessoas que todos os anos tentam sem sucesso matar-se. (...) Um suicida contamina psicologicamente outras cinco pessoas".
Pág. 12,13

A separação dos amantes
Igor Caruso. Ed. Cortez
TRECHO: "Aliás, veremos como a separação amorosa e a morte são cúmplices: a primeira se apresentará como precursora e símbolo da segunda. Ou seja, estudar a separação amorosa significa estudar a presença da morte em nossa vida."
Pág.12

O Deus selvagem - Um estudo do suicídio
A. Alvarez Ed. Cia das letras
TRECHO: "A depressão suicida é uma espécie de inverno espiritual, gelado estéril, imóvel. Quanto mais rica, amena e agradável a natureza se torna, mais intenso parece esse inverno interior, e mais profundo e intolerável o abismo que separa o mundo inteiro do externo." Pág. 93
"Um consolo vos pode alimentar,
Amantes ausentes sempre estão dentro um do outro" Pág.113

Superando a dor do suicídio - como encontrar respostas e conforto quando alguém que amamos tira a própria vida
Albert Hsu. Ed. Vida
TRECHO: "A voz do outro lado parecia muito estranha, uma mistura de uivos com soluços. Quem seria? Era engano? Daí percebi que era minha mãe, histérica. Sua voz estava bloqueada pela emoção, pelo terror e pela dor.
'Papai suicidou-se' - Gemeu ela" Pág. 19
" o suicídio não acaba com a dor. 
Ele apenas a coloca debaixo das asas quebradas dos sobreviventes" Pág. 18
"O suicídio é uma triste realidade no mundo. A cada ano milhares de pessoas tiram a própria vida e deixam um rastro de sofrimento e emoções conflitantes. Parentes e amigos ficam chocados e passam por um profundo trauma emocional. Começam a fazer perguntas de difícil respostas: 'Porque isso aconteceu? Porque não percebemos antes? Poderíamos ter feito alguma coisa para evitá-lo? Como podemos seguir em frente?'"

Os sentidos da morte
John Bowker. Ed. Paulus
TRECHO: "Aqui jaz Regina, sepultada em túmulo tão belo,
que movido pelo amor a ela seu esposo ergueu...
Ela viverá de novo, ela retornará a luz,
porque ela pode esperar a ressurreição naquela eternidade
que é prometida com absoluta segurança para os que são 
dignos e piedosos" Pág. 86

O Deus que conheço
Rubem Alves - Ed. Verus
TRECHO: "Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: 'Morrer, que me importa? O diabo é deixar de viver'. A vida é tão boa! Não quero ir embora...
 Eram seis da manhã. Minha filha me acordou. Ela tinha 3 anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: 'Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?' Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: 'Não chore que eu vou te abraçar...' Ela, menina de 3 anos, sabia que a morte é onde mora a saudade. A montanha encantada dos gansos selvagens.
 Cecília Meireles sentia algo parecido:
Pergunto se este mundo existe,
e se, depois que se navega,
a algum lugar, enfim, se chega...
- O que será, talvez, mais triste.
Nem barca nem gaivota:
somente sobre-humanas companhias..."Pág.37

Eu aqui sob a terra,
Tu aí, sob o Sol
Só a terra nos separa...
Que agora faz parte de mim
Que logo fará parte de ti.
Por enquanto: Celebra a vida.
                                       ERIVAN

"Pensar é estar doente do corpo"*

 

Por Rubem Alves (1)


 Fernando Pessoa dizia que "pensar é estar doente dos olhos". No que eu concordo. E até amplio um pouco:"Pensar é estar doente do corpo". O pensamento marca o lugar da enfermidade. Ah! você duvida. O meu palpite é que, neste preciso momento, você não deva estar tendo pensamentos sobre seus dentes, a menos que um deles esteja doendo. Quando os dentes estão bons, não pensamos neles. Como se eles não existissem. O mesmo com os olhos. Você só tomará consciência deles se estiver com problemas oculares, miopia ou outras atrapalhações. Quando os olhos estão bem a gente não pensa neles: eles se tornam transparentes, invisíveis, desconhecidos, e através de sua absoluta transparência e invisibilidade o mundo aparece. O corpo inteiro é assim. Quando está bom, sem pedras no sapato, sem cálculos renais ou hemorroidas, sem taquicardias ou enxaquecas, ele fica também transparente, e a gente se coloca inteiramente, não nele, mas na coisa de fora: o caqui, a árvore, o poema, o corpo do outro, a música. Quando o corpo está bem, ele não conhece. Claro que tem pensamentos; mas são pensamentos de outro tipo, de puro gozo, expressivos de uma harmonia que não deve ser perturbada por nenhuma atividade epistemológica.

  Mas basta aparecer a dor para que tudo se altere. A dor indica que um problema apareceu. A vida não vai bem. É aquela perturbação estomacal, mal-estar terrível, vontade de vomitar, e vem logo a pergunta: "Que foi que comi? Será que bebi demais? Ou teria sido a linguiça frita? Pode ser, também, que tudo tenha sido provocado por quela contrariedade que tive...". Essas perguntas que fazemos, diante de um problema, são aquilo que, na linguagem científica, recebe o nome de hipóteses. Hipóteses é o conjunto de peças imaginárias de um quebra-cabeça, que acrescentamos àquela que já temos em mãos com o propósito de compreendê-la. Compreender, evidentemente, para evitar que o incômodo se repita. Pensar para não sofrer. Deve haver, no universo, milhões e milhões de situações que nunca passaram pela nossa cabeça: nunca tomamos consciência delas, nunca as conhecemos. É que elas nunca nos incomodaram, não perturbaram o corpo, não lhe produziram dor. Só conhecemos aquilo que incomoda. Não, não estou dizendo toda a verdade. Não é só da dor. Do prazer também. Você vai almoçar numa casa e lá lhe oferecem um prato divino, que dá ao seu corpo sensações novas de gosto e olfato. Vem logo a ideia: "Que bom seria se, de vez em quando, eu pudesse renovar este prazer. E, infelizmente, não posso pedir para continuar a ser convidado". Usamos então a fórmula clássica: "Que delícia: quero a receita...". Traduzindo para os nossos propósitos: "Quero possuir um conhecimento que me possibilite repetir um prazer já tido". O conhecimento tem sempre o caráter de receita culinária. Uma receita tem função de permitir a repetição de uma experiência de prazer. Mas quem pede a repetição não é o intelecto. É o corpo. Na verdade, o intelecto puro odeia a repetição. Está sempre atrás de novidades. Uma vez de posse de um determinado conhecimento, ele não fica repassando e repassando. "Já sei", ele diz, e prossegue para coisas diferentes. Com o corpo acontece o contrário. Ele não recusa o copo de vinho, dizendo que daquele já bebeu, nem se recusa a ouvir uma música, dizendo que já a ouviu antes, nem rejeita fazer amor, sob a alegação de já ter feito uma vez. Uma vez só não chega. O corpo trabalha em cima da lógica do prazer. E, do ponto de vista do prazer, o que é bom tem de ser repetido, INDEFINIDAMENTE.


*O título original do autor é: Ciência, coisa boa...
É o primeiro capítulo do livro Introdução às Ciências Sociais.
Ed. Papirus 

(1) Filósofo, educador, doutor em filosofia pela universidade de Princeton (New Jersey),
professor da Faculdade de Educação da Unicamp, autor de vários livros.

sábado, 12 de novembro de 2011

Religião popular - Religião reflexiva



É importante ter em mente a distinção entre religião  de nível popular e religião de nível reflexivo. Na religião popular, o grau de consciência reflexiva é bastante baixo. É um tanto como a de crianças experimentando alguma coisa. As crianças não estão muito cônscias de que estão experimentando alguma coisa, mas antes tendem a ficar exclusivamente enfocadas na coisa experimentada. Dizemos, então, que as crianças são ingênuas, isto é, sua mentalidade ainda se aproxima da maneira como se apresentava quando nasceram, natus. As crianças tendem a entender as coisas de forma que é antes literal, direta e imediata, isto é, sem nenhum elemento intermediário, sem nenhuma distância mental enter a coisa experimentada e quem a experimenta.

 Esse nível religioso e primitivo, se manifesta hoje nas ditas religiões fundamentalistas, radicais, dogmáticas, extremas. Se auto-idolatram. Justificam essa jactância com a teoria do ¨povo eleito¨. Se são povo eleito, logo, os outros povos são uma criação secundária de Deus. 
 Falando do cristianismo, em particular os ditos pentecostais são o melhor exemplo para entender o nível chamado religião popular (a idéia não é ser pentecostal de coração e mente, mas não ser pentecostal de maneira nenhuma). Ser pentecostal hoje é o mesmo que limitar o pensamento reflexivo; é o mesmo que reduzir tudo à espiritualidade. Demonizar pessoas e ambientes; creêm em maior ou menor grau nos seguintes pontos: 
  1. batalhas espirituais: Vivemos cercados por legiões de demônios e para vencê-los é preciso muita oração e jejum; 
  2. uma sede exacerbada de poder - "Mais oração, mais poder; menos oração, menos poder". Essa fraseologia é corriqueira em cultos pentecostais - Chamam essa explosão emocional (poder) de batismo no/com Espírito Santo. Dividindo os fiéis entre os batizados e os não batizados. O vício por emoção e por poder chega a ser narcotizante. A igreja, espaço físico torna-se pequena. Quando isso ocorre, o monte é o melhor lugar onde as emoções podem ser afloradas sem impedimentos ;
  3. acreditam piamente / literalmente que a prática do dízimo é garantia de prosperidade financeira. Barganhar com o divino é prática comum nas religiões populares (pentecostal/neo-pentecostal); 
  4. acreditam que muito oração é necessário para obter bençãos de Deus. Campanhas infindas fazem parte do rol litúrgico eclesiástico;
  5. acreditam (alguns) em maldição hereditária, superstições, fetiches religiosos reforçam a fé dessas crianças espirituais. O frenesi religioso é comparado à torcidas de futebol organizadas quando seu time esta em campo. Gritaria e euforia é o que não falta. 
 O povo pentecostal é fechado em sua experiência. Conscientes ou não, promovem o anti-intelectualismo com cultos alucinantes e milagres mirabolantes que até Deus duvida. O leitor talvez estranhe o tom crítico com que escrevo, porém, não estou de forma alguma desmerecendo a prática religiosa pentecostal ou a inferiorizando frente as demais. Apenas estou evidenciando um fato onde a prática pentecostal me serve como exemplo.

 Quando falo de religião popular, refiro-me aquela massificada pela mídia; manipuladora da mente e fé dos fiéis. Religião aceita pela emoção; recusada pela razão, pois seu culto não é um ¨sacrifício racional¨. Tal religião é um estágio transitório. O problema é quando ela se torna um fim em si mesma. Jamais passará a um estágio posterior: jamais passará para a vida adulta.

 Mas, a medida que as crianças crescem através da puberdade para a vida adulta, ganham certa distância para com as coisas que aprenderam quando eram pequenas, e para consigo mesmas. Tornam-se cônscias não só das coisas com que se encontram, mas também cada vez mais cônscias do seu experimentar as coisas. Muitas vezes se tornam críticas das coisa que antes aprenderam, às vezes, rejeitando-as, porque julgam talvez que possam não ser literalmente verdadeiras, como antes entenderam que eram.

 Se o processo de maturação continua como deve, os "jovens adultos" passaram gradualmente para a fase de uma "segunda ingenuidade", como a chama Paul Ricoeur. Agora os adultos percebem que muitas vezes as coisas que entenderam quando eram crianças como literalmente verdadeiras, e rejeitaram como não literalmente verdadeiras quando eram jovens adultos, são de fato verdadeiras, muito mais verdadeiras do que pensavam as crianças que as tomaram literalmente, ou os adolescentes que as rejeitaram da mesma forma. Agora elas são vistas pelo que elas são verdadeiramente, e elas são muitas vezes metáforas, símbolos, imagens apontando para uma realidade muito mais profunda do que se pode expressar em linguagem literal.

 A religião reflexiva, por sua vez, é aquela que promove a teologia (não a sistemática e catecista, mais a teologia do humano. Uma teologia humana e real); Teologia como práxis transformadora e construtivista. É teologia sempre reformada pois aceita conceitos como construção histórica-humana e como tal, conceitos são: respostas provisórias ao anseio humano; conceitos são balizas mutáveis. Eles nascem e morrem; se fortalecem ou enfraquecem; isso varia com a necessidade temporal, histórica- cultural. Jamais são absolutos em si mesmos; jamais são verdades transcendentais. "Nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos, nem tudo é exigido em todo momento".
 Assim, haverá indivíduos, sem se levar em conta a idade, cuja consciência está em nível bastante ingênuo, e indivíduos cuja consciência religiosa está num nível muito reflexivo - e pessoas em toda parte em posição média. Haverá também comunidades inteiras destes diversos tipos: como por exemplo certas igrejas protestantes como, no caso, o pentecostalismo que citamos anteriormente.
Religião é também uma questão de razão. "uma crença sem provas é a base de uma fé cega"    

Sobre tempo e consciência



¨Deus passou a existir com o tempo;
no momento que Ele decidiu criar, especificamente
o humano, Ele passou a existir¨                            
                                          ERIVAN

Naquele tempo havia um homem lá. Ele existiu naquele tempo. Se existiu, já não existe. Existiu, logo existe porque sabemos que naquele tempo havia um homem e existirá, enquanto alguém contar sua história. Era um ser humano que estava lá, ¨naquele tempo¨, e só seres humanos podem contar sua história porque só eles sabem o que aconteceu ¨naquele tempo¨. ¨Aquele tempo¨ é um tempo dos seres humanos, o tempo humano.

 Um homem estava ¨lá¨, naquele tempo. Estava lá e não aqui. No entanto, está aqui e permanecerá enquanto alguém narrar aqui a sua saga. Era um homem quem ¨estava lá¨, e, apenas, os seres humanos podem situá-lo ¨lá¨, pois só eles sabem a respeito de ¨aqui¨ e ¨lá¨, categorias que constituem o espaço dos seres humanos, o espaço humano.

 A historicidade não é apenas alguma coisa que acontece conosco, uma mera propensão, na qual nos ¨metemos¨ como quem veste uma roupa. Nós somos historicidade; somos tempo e espaço. As duas ¨formas de percepção¨ de Kant nada mais são do que a consciência do nosso Ser e esta consciência é nosso próprio Ser. As categorias a priori de Kant - quantidade, qualidade, relação e moralidade - são secundárias de um ponto de vista ontológico. Não constituem a consciência de nosso Ser, mas expressão de reflexão consciente  sobre nosso Ser. Os seres humanos podem conceber tempo e espaço sem quantidade, qualidade, relação e moralidade ( o vazio, o vácuo universal ), mas não podem pensar estas categorias fora do tempo e do espaço. Até mesmo o absurdo é temporal e espacial, porque nós somos tempo e espaço.

¨Todo ser humano é mortal¨.  O animal perece, mas não é mortal. Só são mortais aqueles que têm consciência de que perecerão. Só seres humanos são mortais. Uma vez que somos tempo, esta é a razão pela qual não éramos e não seremos. Uma vez que somos espaço, nosso não-Ser significa não estar aqui. Quando já não formos, não estaremos aqui, mas lá: no ar, no vento, no fogo, no Hades, nos Céus, no inferno ou na nulidade. Entretanto, mesmo a nulidade é espaço, tanto quanto nunca é tempo. Somos mortais, mas não estamos mortos. Não podemos conceber o estarmos mortos, posto que somos tempo e espaço.

 O fato de que não éramos e de que não seremos significa que, quando não estávamos, outros estavam e que, quando já não estivermos, outros estarão; além disto, que, quando já não estivermos aqui, outros aqui estarão. Podemos imaginar que não existíssemos e que não estivéssemos aqui nos tempos de Cesar ou de Napoleão, contudo é inimaginável que não existíssemos e aqui não estivéssemos, quando ninguém existia. É imaginável que não seremos e não estaremos aqui, quando outros serão e estarão, mas é inimaginável que não sejamos, quando ninguém estiver. Não estar aqui só tem significado se outros estiverem. Estar em algum lugar só tem sentido se houver algum lugar, do mesmo modo que o não-Ser só é inteligível porque existe o ser. ¨Naquele tempo havia um homem¨ significa que existe alguém que narra a saga dele e que haverá alguém que a contará depois. A historicidade de um único homem implica a historicidade de todo o gênero humano. O plural é anterior ao singular: se somos, sou e se não somos, não sou. A questão fundamental da historicidade é a pergunta de Gauguin: ¨De onde viemos, o que somos e para onde vamos?¨.

 A partir da mortalidade, do tempo e do espaço é que sempre levantamos a mesma questão e aí expressamos a historicidade do gênero humano, com a qual a historicidade de nosso Ser (do Ser de cada indivíduo) esteve e estará sempre correlacionada. A pergunta nunca muda, mas as respostas variam. A resposta à pergunta - ¨De onde viemos, o que somos e para onde vamos?¨ - será chamada consciência histórica e as múltiplas respostas a ela, diferentes em substância e estrutura, serão ditos estágios da consciência históricas.

Vide: Uma teoria da história
Agnes Heller