terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Novos rumos teológicos e existenciais


Novos rumos teológicos e existenciais


O texto que segue foi escrito num período de transição intelectual no final de 2012. Foi um período onde eu estava abandonando gradativamente a religião e abraçando, em um primeiro momento o agnosticismo e, depois, o ateísmo. Hoje, mesmo sendo declaradamente ateu, não me fechei nem me fecharei as perspectivas religiosas. (Vide P.S.)


Estou seguindo em frente. Não sei se estou evoluindo (ou involuindo quem sabe). Sei que trilho novos caminhos teológicos e, me parece, que a cada passo que dou a estrada atrás de mim se desfaz: deixa de existir como possibilidade de retorno. Ela permanece apenas como memória viva... Cada ponte que cruzo é destruída logo após a minha passagem.

Deixei minha casa segura, confortável... Trilho só por caminhos ora estranhos ora familiares. Às vezes dá medo. Dá frio. As possibilidades de caminhos alternativos são infinitas. Porém eu me sinto livre: apesar da angústia. É importante não converter o medo da liberdade em medo de Deus, pois, como escreveu Torres Queiruga “[...] Tudo se transforma. A promessa converte-se em ameaça, o chamado em imposição, a existência em castigo, o Evangelho em lei.”

Durante o tempo em que me classificava como fundamentalista pentecostal, enxergava tudo muito claramente. Era tudo muito simples  "Me lembro de como tudo era simples eu via assim" (Oficina g3). Eu cresci, e, como Paulo, deixei as coisas de criança.

Toda transição é dolorosa e não é fácil. Toda mudança tem seu quinhão de dor e sentimento de desolação. Desfazer ou rever conceitos tão ardentemente defendidos outrora, é como deixar de ser você mesmo. É como amputar parte de seu corpo, e com isso, vez ou outra, vem a nostalgia. Nunca o retorno. Quando abrimos mão de um conceito para abraçarmos o novo ou nada, o retorno seria catastrófico. E a perda da identidade seria mais acentuada. O caminho da volta é simplesmente impossível. Não posso simplesmente me levantar e ir "ter com o meu pai", nem sei se Ele se encontra lá; não posso mais voltar à casa aconchegante do fundamentalismo, sendo que para mim ela há muito deixou de existir; não posso mais me classificar como pentecostal porque meu coração não é, e minha mente não crer... Não tenho mais fé para isso. Meus rumos teológicos agora são outros.

Sei que nessa caminhada estou mais só que acompanhado. A caminhada é dura e árdua e eu nem sei se vale ou valerá a pena. Eu rompi com os meus próprios limites de pensamento, e agora pago o preço por isso. Pago o preço por viver em minha própria época. Pago o preço por existir e nessa existência segui um certo realismo que, nas palavras de Lin Yutang: "Significa, se assim podemos dizer, segurar a vida pelo pescoço, por medo a que as asas da imaginação a arrebatem para um mundo imaginário e possivelmente belo, mas irreal." Acho que consegui segurar a "vida pelo pescoço" e a fiz permanecer na realidade. Talvez feia, mas real. Isso fez com que eu me classificasse por um lado como existencialista, embora eu não seja só isso, pois me considere acima de rótulos.

É importante ressaltar que ainda não cheguei a lugar algum. Ainda estou no processo de transição, e este processo é extremamente lento; pode durar a vida inteira; não acontece da noite para o dia.

Uma pergunta se faz gritante a este ponto: quais são pois os rumos tomados? Ainda não estão claros, porém a teologia liberal de viés alemão é um ótimo indicativo. Leia Tillich, Barth, Bultmann e imagine que seus livros tenham sido escritos por mim. Eles (mas não só eles. A teologia latinoamericana tem ganhado minha atenção) são um indicativo dos novos rumos que estou trilhando.

Pratico um cristianismo sem religião. Assim como Vahanian, vejo a religiosidade como o real inimigo da fé cristã. Citando Bultmann: "O cristianismo degenerou em religiosidade e, dessa forma, condenou-se à ruína, porque não captou o problema de estabelecer a correlação entre a verdade da fé cristã e as verdades empíricas, em meio às quais transcorre a vida humana. Foi esquecida a polaridade que existe entre a responsabilidade do ser humano diante de Deus e seu envolvimento no mundo". Sigo sem influências divinas ou satânicas. Abraço a vida humana, com seus problemas humanos e soluções igualmente humanas. Não volto minhas costas para o mundo pois o mundo faz parte de mim. Bultmann nos diz ainda o seguinte: " (...) a relação do ser humano com Deus não é uma relação especificamente religiosa, na qual o ser humano volte as costas para o mundo." E, prossegue: "Não há fuga do mundo para um além, mas Deus vem ao nosso encontro no aquém. O que importa é entender esse paradoxo, o que, em última análise, não acontece na reflexão teológica, mas na vida real, na existência". Lembremos pois que Nietzsche, também, combatia essa metafísica. Toda questão em torno do cristianismo e de Cristo gira em torno de se apostar em um outro mundo, em uma outra vida, em detrimento desta vida, deste mundo. Seu grande objetivo é a um só tempo, uma denúncia contra tipos cristãos e uma incessante pugna contra a metafísica que faz do platonismo um cristianismo para o povo, evocando, para isso, o além. Eu penso em uma teologia que parte do humano/mundo para o divino e não ao contrário. Teologia não é revelação divina. Teologia é aspiração humana, nascida num contexto humano, portanto, no mundo. Tudo que nós pensamos/criamos é a partir daqui (mundo) nunca dali (Céu, ou outra existência). Isso inclui tudo o que pensamos sobre Deus – teologia – é gerada no mundo. Todo nosso pensamento sobre Deus parte de nós para Ele. Então, meus novos rumos teológicos partem de experiências humanas. Entendo que as doutrinas foram elaboradas pelos anseios humanos, e que Deus se parece mais conosco do que nós com Ele. Algumas doutrinas, se não todas, devem ser repensadas e é justamente isso que tenho feito e escrito ultimamente.

1. Meus novos rumos exigem uma nova imagem de Deus. Um Deus de cultura judaica jamais poderá ser entendido, sequer aceito no mundo pluricultural de hoje. Parafraseando Queiruga: a imagem que nos chega de Deus vem de um molde cultural que pertence a um passado que em grande parte já se tornou caduco. Quem hoje em dia estaria disposto a sacrificar (matar) seu próprio filho a mando de Deus como fez Abraão? O Deus com face judaica exigia sacrifícios de animais para perdoar pecados, ou seja, exigia sangue pois, constantemente vivia irado. Pergunta: qual cristão sincero sacrificaria um bode  a Deus? Fica claro que esse Deus tribal outrora aceito não faz o mínimo sentido hoje. “Libertar” Deus das amarras judaicas já é um bom começo, uma boa proposta. Penso que Deus não é um iconoclasta cultural. Deus é aceito ou rejeitado na cultura de cada povo sem haver obrigatoriamente a destruição desta.

2. Meus novos rumos tomados exigem uma nova imagem do cristianismo. Isso implica em libertar a sociedade de um certo cristianismo convencional, doente e que pouco, para não dizer nada, contribui para a humanidade (amor, tolerância...) C.S. Lewis escreveu um livro cujo título é Cristianismo puro e simples, ele que me perdoe mas a imagem do cristianismo atual é muito impura e complicada. Nada tem de puro ou simples. Quando falamos em cristianismo subentendemos a figura de Cristo; essa figura, muito ou pouco, tem sido manipulada pela teologia particular de cada época bem como pela crença individual transformada em pregação; pregação esta, que alimenta milhares de fiéis todos os domingos. Assim como Bultmann, acredito que não se pode resgatar o Jesus histórico. Bultmann jamais duvidou que podemos obter uma imagem suficientemente clara do ensino e, portanto, das intenções e da obra de Jesus. O que contesta é que nós possamos reconstruir a vida de Jesus e uma imagem de sua personalidade, nos moldes tentados pela teologia liberal. Porque nem o próprio Jesus nem os seus primeiros adeptos pensaram que a salvação reside nas personalidades; por essa razão, a tradição cristã não se interessou pela personalidade “Jesus”. Seu interesse estava voltado para a obra, de Jesus, que atuava por meio de sua palavra, e esse é justamente o interesse que orienta o próprio Bultmann. Seguindo no mesmo pensamento bultniano, entendo que evangelho não é a pregação do próprio Jesus, mas a posterior pregação de Jesus como crucificado e ressurreto. A pessoa de Jesus Cristo é conteúdo do querigma somente como proclamado, não como proclamador. Esse “Jesus” que é pregado (querigma) domingo pós domingo tem mais haver com a personalidade do pregador do que com o Jesus real. Não reprovo isso, sendo que só podemos conhecer o Jesus pregado/proclamado e nunca o Jesus histórico. Na experiência humana encontramos uma linguagem forte o suficiente para entendermos Deus e seu Cristo de forma mais clara. É bem provável que isso seja um pecado hermenêutico na leitura bíblica, porém não vejo outro meio de se fazê-lo; toda pregação é um pecado hermenêutico; todo escrito sobre o Cristo, idem. A projeção de nossos sentimentos, expressões devocionais e mesmo nossa carga cultural, será o indicativo de nossa interpretação e aplicação da Palavra de Deus. Para haver uma nova imagem do cristianismo partamos inicialmente da nossa cristologia; esta cristologia determina qual imagem temos do nosso cristianismo. É importante separar o Jesus da fé do Jesus da história. Este, só é entendido em seu próprio contexto histórico e é absolutamente irresgatável, pois o abismo histórico é intransponível (ninguém poderá voltar ao passado). O que temos são versões sobre Jesus. Uma imagem pintada por cada historiador que, na realidade, reflete sua própria personalidade; aquele (Jesus da fé) continua bem vivo no coração dos crentes. Está no campo das experiências. É nessa experiência que recebemos o “Cristo total”. Nessa genuína experiência cristã, “o cristão não se encontra submetido a uma espécie de exigência tirânica, obrigado a cumprir, no limite de suas forças, alguns mandamentos alheios a seu ser (Heteronomia) O que lhe é pedido consiste, justamente, no que previamente é oferecido a ele: intimamente transformado e elevado a um nível mais alto de existência, o imperativo constitui na realidade, para o cristão, o chamado a ser o que é: a ser livre e pessoalmente o que real e onticamente já é pela graça” (QUEIRUGA). Os dados exigem o fim do cristianismo convencional, e como promessa: um cristianismo mais livre, pessoal e que afirme a humanidade e dignidade de todo ser humano, tomando como modelo a pessoa e obra de Cristo (o Jesus da fé). É através do Jesus querigmático (fé/proclamado) que encarnamos seu amor, suas obras, sua vida... “Aquele que está em mim dá muito fruto”, isso é trilhado pelo caminho da fé “que vem pelo ouvir” e não pelo academicismo teológico. Se houvesse a possibilidade de resgatar o Jesus histórico, provavelmente o Jesus da fé não existiria. I. é, não faria sentido. O Jesus da fé é aquele que não é “capturado” pelas lentes conceituais seja filosófica (ontologia), seja teológica (cristologia). O Jesus da fé está na simbologia ritual da ceia onde o pão é o seu corpo e o vinho seu sangue; é em seu nome que oram, pois entendem que seu corpo místico está onde “estiver dois ou três”. Todo o cristianismo deve ser retratado a partir dessa imagem de Jesus.

3. Adotar novos rumos exige toda uma reforma teológica. É fato que a metodologia teológica atual é saturada de informações indigeríveis. Informa mas não forma. Penso que a teologia atual – leia-se a teologia sistemática – perdeu todo o seu propósito e nada de real tem a dizer aos anseios humanos. Quando certa pessoa encara a empreitada de escrever uma teologia sistemática, qual a sua intenção? Qual a contribuição para o pensamento cristão? Em que um novo compêndio teológico é melhor ou pior que outro? Tudo que a teologia sistemática produz no leitor atual, é enfado e canseira, ou mesmo perca de tempo. Quem estaria disposto a ler a Teologia Sistemática do Charles Hodge? Quando falo de uma reforma teológica não quero dizer que se deva escrever mais livros de teologia, mas, menos. De teologia estamos cheios. O que inicialmente podemos propor é uma releitura dos conceitos doutrinais. Eis alguns que exigem mais pressa de serem revistos: Pecado Original; Inferno; Deus; Escatologia. Nos próximos escritos, tentarei abordar alguns deles (re)conceituando quando possível e, como ensaio propor o diálogo.

Nesses novos rumos tomados não quero seguidores (optei por não ser pastor nem rebanho). Só quero expor o que entendo ser “novos rumos teológicos e existenciais”.

Erivan Silva




P. S.
24/03/2016

Desde que escrevi o texto acima muita coisa se passou. E, obviamente não sou a mesma pessoa. Pelo menos não com os mesmos pensamentos. Hoje, mesmo me declarando ateu não me fechei totalmente à teologia. Sigo um conselho do Jürgen Habermas que diz que é razoável manter uma certa distância da religião, sem se fechar totalmente às suas perspectivas. Me divorciei da teologia mas vez ou outra ainda passo na sua casa, mesmo namorando seriamente com a filosofia. Alguém pode se perguntar: Como alguém que se declara ateu ainda flerta com a religião? A resposta é bem simples: primeiro, não é possível se fechar na redoma filosófica sem levar em consideração os sistemas das crenças. Lembro-me do Reale que diz que pode filosofar a favor da religião, com a religião ou contra a religião, nunca como se ela jamais houvesse existido. Por esse motivo prefiro deixar a porta da teologia aberta, polo menos aberta ao diálogo. Segundo, se fechar contra a religião seria uma extrema ignorância. Por mais ateu que seja seria insustentável a seguinte afirmação: "eu sei que Deus não existe". De igual modo seria insustentável "eu sei que Deus existe". Se aceitamos que o saber é empírico, logo afirmações desse tipo não faz o mínimo sentido. Acredito piamente que não há nada do outro lado, mas não sei. Se o crente soubesse e provasse que Deus existe não haveria o ateísmo; de igual modo se os cientistas soubessem que não há Deus algum simplesmente provariam empiricamente. Deus e suas manifestações religiosas não foram superadas, e ainda é objeto das mais diversas reflexões seja filosófica, sociológica, antropológica etc. Por isso não abro mão do diálogo inter-religioso, multi-religioso e trans-religioso. A reflexão não pode se prender a um campo específico. Não pode se fechar. Caso contrário não haverá diálogo algum e logo, não haverá conhecimento.

Erivan silva