Novos rumos teológicos e existenciais
O texto que segue foi escrito num período de transição intelectual no final de 2012. Foi um período onde eu estava abandonando gradativamente a religião e abraçando, em um primeiro momento o agnosticismo e, depois, o ateísmo. Hoje, mesmo sendo declaradamente ateu, não me fechei nem me fecharei as perspectivas religiosas. (Vide P.S.)
Estou
seguindo em frente. Não sei se estou evoluindo (ou involuindo
quem sabe). Sei que trilho novos caminhos teológicos e, me parece, que a cada
passo que dou a estrada atrás de mim se desfaz: deixa de existir como
possibilidade de retorno. Ela permanece apenas como memória viva... Cada ponte que cruzo é destruída logo após a minha passagem.
Deixei
minha casa segura, confortável... Trilho só por caminhos ora estranhos ora
familiares. Às vezes dá medo. Dá frio. As possibilidades de caminhos
alternativos são infinitas. Porém eu me sinto livre: apesar da angústia. É
importante não converter o medo da liberdade em medo de Deus, pois, como
escreveu Torres Queiruga “[...] Tudo se
transforma. A promessa converte-se em ameaça, o chamado em imposição, a
existência em castigo, o Evangelho em lei.”
Durante
o tempo em que me classificava como fundamentalista pentecostal, enxergava tudo
muito claramente. Era tudo muito simples "Me lembro de como tudo era simples eu via assim" (Oficina g3). Eu
cresci, e, como Paulo, deixei as coisas de criança.
Toda
transição é dolorosa e não é fácil. Toda mudança tem seu quinhão de dor e sentimento de desolação. Desfazer ou rever conceitos tão
ardentemente defendidos outrora, é como deixar de ser você mesmo. É como
amputar parte de seu corpo, e com isso, vez ou outra, vem a nostalgia. Nunca o
retorno. Quando abrimos mão de um conceito para abraçarmos o novo ou nada, o
retorno seria catastrófico. E a perda da identidade seria mais acentuada. O
caminho da volta é simplesmente impossível. Não posso simplesmente me levantar e ir
"ter com o meu pai", nem sei se Ele se encontra lá; não posso mais voltar à casa aconchegante do fundamentalismo, sendo que
para mim ela há muito deixou de existir; não posso mais me classificar como
pentecostal porque meu coração não é, e minha mente não crer... Não tenho
mais fé para isso. Meus rumos teológicos agora são outros.
Sei que
nessa caminhada estou mais só que acompanhado. A caminhada é dura e árdua e eu
nem sei se vale ou valerá a pena. Eu rompi com os meus próprios limites de
pensamento, e agora pago o preço por isso. Pago o preço por viver em minha
própria época. Pago o preço por existir e nessa existência segui um certo
realismo que, nas palavras de Lin Yutang: "Significa,
se assim podemos dizer, segurar a vida pelo pescoço, por medo a que as asas da
imaginação a arrebatem para um mundo imaginário e possivelmente belo, mas
irreal." Acho que consegui segurar a "vida pelo pescoço" e a fiz permanecer na realidade.
Talvez feia, mas real. Isso fez com que eu me classificasse por um lado como
existencialista, embora eu não seja só isso, pois me considere acima de rótulos.
É
importante ressaltar que ainda não cheguei a lugar algum. Ainda estou no
processo de transição, e este processo é extremamente lento; pode durar a vida
inteira; não acontece da noite para o dia.
Uma
pergunta se faz gritante a este ponto: quais são pois os rumos tomados? Ainda
não estão claros, porém a teologia liberal de viés alemão é um ótimo
indicativo. Leia Tillich, Barth, Bultmann e imagine que seus livros tenham sido
escritos por mim. Eles (mas não só eles. A teologia latinoamericana tem ganhado minha atenção) são um indicativo dos novos rumos que
estou trilhando.
Pratico
um cristianismo sem religião. Assim como Vahanian, vejo a religiosidade como o
real inimigo da fé cristã. Citando Bultmann: "O cristianismo degenerou em religiosidade e, dessa forma,
condenou-se à ruína, porque não captou o problema de estabelecer a correlação
entre a verdade da fé cristã e as verdades empíricas, em meio às quais
transcorre a vida humana. Foi esquecida a polaridade que existe entre a
responsabilidade do ser humano diante de Deus e seu envolvimento no mundo".
Sigo sem influências divinas ou satânicas. Abraço a vida humana, com seus
problemas humanos e soluções igualmente humanas. Não volto minhas costas para o mundo pois
o mundo faz parte de mim. Bultmann nos diz ainda o seguinte: " (...) a relação do ser humano com
Deus não é uma relação especificamente religiosa, na qual o ser humano volte as
costas para o mundo." E, prossegue: "Não há fuga do mundo para um além, mas Deus vem ao nosso encontro
no aquém. O que importa é entender esse paradoxo, o que, em última análise, não
acontece na reflexão teológica, mas na vida real, na existência".
Lembremos pois que Nietzsche, também, combatia essa metafísica. Toda questão em
torno do cristianismo e de Cristo gira em torno de se apostar em um outro
mundo, em uma outra vida, em detrimento desta vida, deste mundo. Seu grande
objetivo é a um só tempo, uma denúncia contra tipos cristãos e uma incessante
pugna contra a metafísica que faz do platonismo um cristianismo para o povo,
evocando, para isso, o além. Eu penso em uma teologia que parte do humano/mundo
para o divino e não ao contrário. Teologia não é revelação divina. Teologia é
aspiração humana, nascida num contexto humano, portanto, no mundo. Tudo que nós
pensamos/criamos é a partir daqui (mundo) nunca dali (Céu, ou outra
existência). Isso inclui tudo o que pensamos sobre Deus – teologia – é gerada
no mundo. Todo nosso pensamento sobre Deus parte de nós para Ele. Então, meus
novos rumos teológicos partem de experiências humanas. Entendo que as doutrinas
foram elaboradas pelos anseios humanos, e que Deus se parece mais conosco do
que nós com Ele. Algumas doutrinas, se não todas, devem ser repensadas e é
justamente isso que tenho feito e escrito ultimamente.
1. Meus
novos rumos exigem uma nova imagem de Deus. Um Deus de cultura judaica jamais poderá
ser entendido, sequer aceito no mundo pluricultural de hoje. Parafraseando
Queiruga: a imagem que nos chega de Deus vem de um molde cultural que pertence
a um passado que em grande parte já se tornou caduco. Quem hoje em dia estaria
disposto a sacrificar (matar) seu próprio filho a mando de Deus como fez
Abraão? O Deus com face judaica exigia sacrifícios de animais para perdoar
pecados, ou seja, exigia sangue pois, constantemente vivia irado. Pergunta:
qual cristão sincero sacrificaria um bode a Deus? Fica claro que esse Deus
tribal outrora aceito não faz o mínimo sentido hoje. “Libertar” Deus das
amarras judaicas já é um bom começo, uma boa proposta. Penso que Deus não é um
iconoclasta cultural. Deus é aceito ou rejeitado na cultura de cada povo sem
haver obrigatoriamente a destruição desta.
2. Meus
novos rumos tomados exigem uma nova imagem do cristianismo. Isso implica em
libertar a sociedade de um certo
cristianismo convencional, doente e que pouco, para não dizer nada, contribui
para a humanidade (amor, tolerância...) C.S. Lewis escreveu um livro cujo
título é Cristianismo puro e simples,
ele que me perdoe mas a imagem do cristianismo atual é muito impura e
complicada. Nada tem de puro ou simples. Quando falamos em cristianismo
subentendemos a figura de Cristo; essa figura, muito ou pouco, tem sido
manipulada pela teologia particular de cada época bem como pela crença
individual transformada em pregação; pregação esta, que alimenta milhares de
fiéis todos os domingos. Assim como Bultmann, acredito que não se pode resgatar
o Jesus histórico. Bultmann jamais duvidou que podemos obter uma imagem
suficientemente clara do ensino e, portanto, das intenções e da obra de Jesus.
O que contesta é que nós possamos reconstruir a vida de Jesus e uma imagem de
sua personalidade, nos moldes tentados pela teologia liberal. Porque nem o
próprio Jesus nem os seus primeiros adeptos pensaram que a salvação reside nas
personalidades; por essa razão, a tradição cristã não se interessou pela
personalidade “Jesus”. Seu interesse estava voltado para a obra, de Jesus, que
atuava por meio de sua palavra, e esse é justamente o interesse que orienta o
próprio Bultmann. Seguindo no mesmo pensamento bultniano,
entendo que evangelho não é a pregação do próprio Jesus, mas a posterior
pregação de Jesus como crucificado e
ressurreto. A pessoa de Jesus Cristo é conteúdo do querigma somente como
proclamado, não como proclamador. Esse “Jesus” que é pregado (querigma) domingo
pós domingo tem mais haver com a personalidade do pregador do que com o Jesus real.
Não reprovo isso, sendo que só podemos conhecer o Jesus pregado/proclamado e
nunca o Jesus histórico. Na experiência humana encontramos uma
linguagem forte o suficiente para entendermos Deus e seu Cristo de forma mais
clara. É bem provável que isso seja um pecado hermenêutico na leitura bíblica,
porém não vejo outro meio de se fazê-lo; toda pregação é um pecado
hermenêutico; todo escrito sobre o Cristo, idem. A projeção de nossos
sentimentos, expressões devocionais e mesmo nossa carga cultural, será o
indicativo de nossa interpretação e aplicação da Palavra de Deus. Para haver
uma nova imagem do cristianismo partamos inicialmente da nossa cristologia; esta cristologia determina qual imagem temos do nosso cristianismo. É
importante separar o Jesus da fé do Jesus da história. Este, só é entendido em
seu próprio contexto histórico e é absolutamente irresgatável, pois o abismo
histórico é intransponível (ninguém poderá voltar ao passado). O que temos são versões sobre Jesus. Uma imagem
pintada por cada historiador que, na realidade, reflete sua própria
personalidade; aquele (Jesus da fé) continua bem vivo no coração dos crentes.
Está no campo das experiências. É nessa experiência que recebemos o “Cristo
total”. Nessa genuína experiência cristã, “o
cristão não se encontra submetido a uma espécie de exigência tirânica, obrigado
a cumprir, no limite de suas forças, alguns mandamentos alheios a seu ser
(Heteronomia) O que lhe é pedido consiste, justamente, no que previamente é
oferecido a ele: intimamente transformado e elevado a um nível mais alto de
existência, o imperativo constitui na realidade, para o cristão, o chamado a
ser o que é: a ser livre e pessoalmente o que real e onticamente já é pela
graça” (QUEIRUGA). Os dados exigem o fim do cristianismo convencional, e
como promessa: um cristianismo mais livre, pessoal e que afirme a humanidade e
dignidade de todo ser humano, tomando como modelo a pessoa e obra de Cristo (o
Jesus da fé). É através do Jesus querigmático (fé/proclamado) que encarnamos seu
amor, suas obras, sua vida... “Aquele que está em mim dá muito fruto”, isso é
trilhado pelo caminho da fé “que vem pelo
ouvir” e não pelo academicismo teológico. Se houvesse a possibilidade de
resgatar o Jesus histórico, provavelmente o Jesus da fé não existiria. I. é,
não faria sentido. O Jesus da fé é aquele que não é “capturado” pelas lentes
conceituais seja filosófica (ontologia), seja teológica (cristologia). O Jesus
da fé está na simbologia ritual da ceia onde o pão é o seu corpo e o vinho seu sangue;
é em seu nome que oram, pois entendem que seu corpo místico está onde “estiver dois ou três”. Todo o
cristianismo deve ser retratado a partir dessa imagem de Jesus.
3. Adotar
novos rumos exige toda uma reforma teológica. É fato que a metodologia teológica
atual é saturada de informações indigeríveis. Informa mas não forma. Penso que
a teologia atual – leia-se a teologia sistemática – perdeu todo o seu propósito
e nada de real tem a dizer aos anseios humanos. Quando certa pessoa encara a
empreitada de escrever uma teologia sistemática, qual a sua intenção? Qual a
contribuição para o pensamento cristão? Em que um novo compêndio teológico é
melhor ou pior que outro? Tudo que a teologia sistemática produz no leitor
atual, é enfado e canseira, ou mesmo perca de tempo. Quem estaria disposto a
ler a Teologia Sistemática do Charles Hodge? Quando falo de uma reforma
teológica não quero dizer que se deva escrever mais livros de teologia, mas,
menos. De teologia estamos cheios. O que inicialmente podemos propor é uma
releitura dos conceitos doutrinais. Eis alguns que exigem mais pressa de serem
revistos: Pecado Original; Inferno; Deus; Escatologia. Nos próximos escritos,
tentarei abordar alguns deles (re)conceituando quando possível e, como ensaio
propor o diálogo.
Nesses
novos rumos tomados não quero seguidores (optei por não ser pastor nem
rebanho). Só quero expor o que entendo ser “novos rumos teológicos e
existenciais”.
Erivan Silva
P. S.
24/03/2016
Desde que escrevi o texto acima muita coisa se passou. E, obviamente não sou a mesma pessoa. Pelo menos não com os mesmos pensamentos. Hoje, mesmo me declarando ateu não me fechei totalmente à teologia. Sigo um conselho do Jürgen Habermas que diz que é razoável manter uma certa distância da religião, sem se fechar totalmente às suas perspectivas. Me divorciei da teologia mas vez ou outra ainda passo na sua casa, mesmo namorando seriamente com a filosofia. Alguém pode se perguntar: Como alguém que se declara ateu ainda flerta com a religião? A resposta é bem simples: primeiro, não é possível se fechar na redoma filosófica sem levar em consideração os sistemas das crenças. Lembro-me do Reale que diz que pode filosofar a favor da religião, com a religião ou contra a religião, nunca como se ela jamais houvesse existido. Por esse motivo prefiro deixar a porta da teologia aberta, polo menos aberta ao diálogo. Segundo, se fechar contra a religião seria uma extrema ignorância. Por mais ateu que seja seria insustentável a seguinte afirmação: "eu sei que Deus não existe". De igual modo seria insustentável "eu sei que Deus existe". Se aceitamos que o saber é empírico, logo afirmações desse tipo não faz o mínimo sentido. Acredito piamente que não há nada do outro lado, mas não sei. Se o crente soubesse e provasse que Deus existe não haveria o ateísmo; de igual modo se os cientistas soubessem que não há Deus algum simplesmente provariam empiricamente. Deus e suas manifestações religiosas não foram superadas, e ainda é objeto das mais diversas reflexões seja filosófica, sociológica, antropológica etc. Por isso não abro mão do diálogo inter-religioso, multi-religioso e trans-religioso. A reflexão não pode se prender a um campo específico. Não pode se fechar. Caso contrário não haverá diálogo algum e logo, não haverá conhecimento.
Erivan silva
P. S.
24/03/2016
Desde que escrevi o texto acima muita coisa se passou. E, obviamente não sou a mesma pessoa. Pelo menos não com os mesmos pensamentos. Hoje, mesmo me declarando ateu não me fechei totalmente à teologia. Sigo um conselho do Jürgen Habermas que diz que é razoável manter uma certa distância da religião, sem se fechar totalmente às suas perspectivas. Me divorciei da teologia mas vez ou outra ainda passo na sua casa, mesmo namorando seriamente com a filosofia. Alguém pode se perguntar: Como alguém que se declara ateu ainda flerta com a religião? A resposta é bem simples: primeiro, não é possível se fechar na redoma filosófica sem levar em consideração os sistemas das crenças. Lembro-me do Reale que diz que pode filosofar a favor da religião, com a religião ou contra a religião, nunca como se ela jamais houvesse existido. Por esse motivo prefiro deixar a porta da teologia aberta, polo menos aberta ao diálogo. Segundo, se fechar contra a religião seria uma extrema ignorância. Por mais ateu que seja seria insustentável a seguinte afirmação: "eu sei que Deus não existe". De igual modo seria insustentável "eu sei que Deus existe". Se aceitamos que o saber é empírico, logo afirmações desse tipo não faz o mínimo sentido. Acredito piamente que não há nada do outro lado, mas não sei. Se o crente soubesse e provasse que Deus existe não haveria o ateísmo; de igual modo se os cientistas soubessem que não há Deus algum simplesmente provariam empiricamente. Deus e suas manifestações religiosas não foram superadas, e ainda é objeto das mais diversas reflexões seja filosófica, sociológica, antropológica etc. Por isso não abro mão do diálogo inter-religioso, multi-religioso e trans-religioso. A reflexão não pode se prender a um campo específico. Não pode se fechar. Caso contrário não haverá diálogo algum e logo, não haverá conhecimento.
Erivan silva