segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Três crucificados

Três Crucificados


Chovia bastante e fazia frio. Hoje, definitivamente, ele não sairia de casa. "Um bom lugar pra ler um livro". Lembrou-se do Djavan. Um lugar ele têm: sua casa. Tempo ocioso não lhe falta e na estante, a quantidade de livros é absurda. "Conversa entre mortos" totengespräche. Afinal, dos seus autores favoritos o certo é que a maioria já morreu. Não de overdose. Lembrou-se do Cazuza. Mas suas obras aí estavam. Ideias que se concretizaram; tornaram-se em tinta, em letras, em palavras, em livros, em carne. Sua carne, seu sangue. Lembrou-se do evangelho de João. Hoje, ele pode se alimentar das ideias alheias, de pessoas que ele nunca conheceu. À sua esquerda, afixado na parede, estava uma replica do quadro do Salvador Dali. O Cristo de São João da Cruz 1951. Na imagem o Salvador ali, na cruz, visto de cima para baixo. É realmente uma imagem surrealista. Magnífica de se ver. O Cristo só. Não se vêem os outros dois que foram crucificados com ele. Nem sequer o monte Gólgota. A cruz está no céu tendo as nuvéns de fundo. Aos pés da cruz não há mulheres chorando; apenas um rio, talvez aquele conhecido como Mar da Galileia ou o rio Jordão. Montes ao fundo e dois pescadores: um próximo ao barco e um outro mexendo na rede; um talvez seja João e o outro, Pedro. Até hoje ele se perguntava o porque de nos túmulos, pelo menos nos ocidentais, o símbolo da cruz se faz tão presente, tão forte. A cruz, um símbolo tão simples mas carregado de tanta experiência. Apertou o crucifixo que trazia em seu pescoço com a imagem de Cristo crucificado. "Pai nosso que estais no céu..." começou a rezar baixinho de olhos fechados. Era católico praticante. Se orgulhava disso. Adorava ler os livros escritos pelo ex Papa Bento XVI, mas adorava de igual modo o pensamento iconoclasta do Papa Francisco. Lembrou-se de Celestino V, outro Papa que em 1294 também abdicou do papado. Só Deus sabe o motivo real que levaram esses dois Papas a abdicarem do trono de Pedro. Seria ele mesmo Papa algum dia? Tal pensamento lhe fez rir. Ainda de joelhos abriu a Bíblia (de Jerusalém) que estava à sua frente. Não a abriu aleatoriamente. Escolheu o terceiro evangelho, Lucas, mais precisamente no capítulo 23 e versículo 33 em diante: Chegando ao lugar chamado Caveira, lá o crucificaram, bem como aos malfeitores, um à direita e outro à esquerda. Jesus dizia: "Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem". Tendo lido o texto, mais uma vez rezou o Pai Nosso e fez por três vezes o sinal da cruz: na testa, nos lábios e no peito.

Erivan Silva
02112015

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Encontrei você na cama, mas você não estava dormindo

Encontrei você na cama, mas você não estava dormindo.

Deitada como de costume, te vi. Pensei comigo: minha linda de tão cansada apagou.

Inclinei-me para beijar-te e de súbito senti que algo estava errado.

Estavas fria, imóvel...
Nos teus olhos semicerrados não havia brilho algum. Tu'Alma não estava lá.

Quem dera estivésseis dormindo amada minha. E assim nos aconchegaríamos em nosso ninho de fantasias.

Mas não, não estavas dormindo, nem fingias... E esta noite deitarei só. Dormirei só, numa cama imensa e fria.

E tu dormirás no chão. Abaixo do chão. Numa cantinho onde não cabe mais ninguém... Apenas teu corpo sem alma
Apenas teus olhos sem brilho.

Nos meus sonhos eu abro a porta do quarto e te encontro. Lá estás.
Radiante de amor teus olhos brilham.
Tua boca me seduz
Teu calor me recebe em braços amorosos e fico feliz por tê-la comigo, amor da minha vida.


Não vamos dormir esta noite.

Erivan Silva

domingo, 13 de setembro de 2015

O SÉTIMO SELO - o jogo da morte

O SÉTIMO SELO - o jogo da morte
Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve no céu um silêncio durante cerca de meia hora. (Apocalipse 8.1)

O filme do diretor sueco Ingmar Bergman, O sétimo selo, é no mínimo inquietante. Um cavaleiro, Antonius Block, ao retornar de uma cruzada (séc XIII) encontra sua terra totalmente devastada pela peste negra. Não bastasse isso, a religião (católica) demoniza as mulheres. Acusando-as de bruxaria são queimadas no fogo. O cenário é caótico e apocaliptico.

A morte, a peste negra, o diabo dentre outros, são os grandes medos da Idade Média. O cenário elenca todos esses elementos e uma morbidez angustiante perpassa por praticamente todas as personagens. A morte é personificada e se apresenta a Antonius Block, este, por sua vez, tenta ludibriar a morte em um jogo de xadrez.

Em uma das cenas, o cavaleiro vai até uma igreja e se confessa ao padre sem saber que este é a própria morte disfaçada. Me chama atenção o diálogo que se segue:


Cavaleiro
"Quero confessar com cinceridade, mas meu coração está vazio. O vazio é um espelho que reflete no meu rosto. Vejo minha própria imagem e sinto repugnância e medo. Pela indiferença ao próximo, fui rejeitado por ele [Deus]. Vivo num mundo assombrado, fechado em minhas fantazias."
Padre
"Agora quer morrer?"
Cavaleiro
"Sim, eu quero."
Padre
"E pelo que espera?"
Cavaleiro
"Pelo conhecimento."

"É tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não temos fé em nós mesmos? O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não têm? Por que não posso tirá-lo de dentro de mim? Por que ele vive em mim de uma forma humilhante apesar de amaldiçoa-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que, apesar de ele ser uma falsa realidade eu não consigo ficar livre? (...) Quero conhecimento, não fé... Quero que Deus estenda as mãos para mim, que mostre seu rosto, que fale comigo."
Padre
"Mas ele fica em silêncio."
Cavaleiro
"Eu o chamo no escuro mas parece que ninguém me ouve."
Padre
"Talvez não haja ninguém."
Cavaleiro
"A vida é um horror. Ninguém consegue conviver com a morte e na ignorância de tudo."
Padre
"As pessoas quase nunca pensam na morte."
Cavaleiro
"Mas um dia na vida terão de olhar para a escuridão. (...) Temos de imaginar como é o medo e chamar esta imagem de Deus."
Percebemos claramente como a fala da personagem é aforismática. Nos lembra até os escritos de Nietzsche. Em uma cena, o cavaleiro conversa com uma jovem acusada de bruxaria:


"Está me ouvindo? Dizem que esteve com o diabo."

"Por que pergunta?"

"Tenho motivo pessoal. Quero encontrá-lo."

"Por quê?"

"Quero perguntar a ele sobre Deus. Ele deve conhecê-lo mais do que qualquer um."
Não é totalmente incoerente procurar por Deus atravez do diabo. Nietzsche no livro ALÉM DO BEM E DO MAL, no aforismo 129, disse:

"O diabo tem as mais amplas perspectivas com relação a Deus, por isso se mantêm tão distante dele. - O diabo, isto é, o mais amigo do conhecimento."

A analogia que percebo é que tal como um jogo assim é a vida. Morrem peões, rainhas, cavalos, bispos... Fazemos de tudo para prolongar a vida, mesmo sabendo que nesse jogo, a morte será sempre vencedora. É assim que termina o filme, Antonius Block juntamente com aqueles que ele promete protejer, são arrastados pela morte. Todos de mãos dadas descem ao reino da escuridão.
 
 
 

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

7 de setembro de 1822 - a Independência do Brasil

7 DE SETEMBRO DE 1822 - INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
Por Cecília Salles Oliveira

7 de setembro, dia da independência do Brasil, é a mais conhecida e celebrada data nacional. Está associada à proclamação feita, em 1822, pelo príncipe D. Pedro, às margens do riacho do Ipiranga, em São Paulo, acontecimento que teria assinalado o rompimento definitivo dos laços coloniais e políticos com Portugal.

Entretanto, o episódio do Ipiranga não teve repercussão no momento em que ocorreu, pois a separação do Reino europeu não era uma decisão consensualmente aceita pelos diferentes segmentos da sociedade na época. tanto o delineamento do império e da monarquia constitucional quanto o reconhecimento da data de 7 de setembro como marco da história da nação brasileira foram resultado de complexo processo de lutas políticas que tiveram lugar no Rio de Janeiro e nas demais províncias do Brasil durante a primeira metade do século XIX.

Após 1860, a data começou a ganhar importância no calendário de comemorações oficiais do Império, período em que também foram erguidos monumentos em homenagem à fundação da nacionalidade. Em 1862, foi inaugurada a estátua equestre de D. Pedro I na atual Praça Tiradentes, na cidade do Rio de Janeiro, em honra aos quarenta anos da Independência e à Carta Constitucional de 1824. 1885 e 1890, realizaram-se, na cidade de São Paulo, as obras de construção do Monumento do Ipiranga, palácio de feições renascentistas, edificado no supostos local do famoso "grito", e que após a proclamação da República passou a abrigar o Museu Paulista, popularmente conhecido como Museu do Ipiranga. Especialmente para ornamentar esse edifício, Pedro Américo confeccionou, entre 1886 e 1888, o painel Independência ou morte, imagem emblemática do 7 de setembro.

Com a organização do regime republicano, esse dia passou a figurar como a mais significativa data da história brasileira, sendo festejada anualmente com desfiles militares e outras manifestações. Essas tradições celebrativas se consolidaram em 1922, por ocasião do Centenário da Independência, momento em que foi oficialmente instituído o Hino Nacional cantado até hoje.

A reiterada associação entre Independência e separação de Portugal acabou simplificando a compreensão das circunstâncias históricas do início do século XIX, interpretando-se muitas vezes de forma literal a data de 7 de setembro, como se fosse um fato capaz de alterar o curso da história, quando constitui, sobretudo, um ponto de referência simbólico, cuja definição se deu no campo da política e implicou o esquecimento de outros marcos, a exemplo da abdicação de D. Pedro I, a 7 de abril de 1831.

Além disso, as palavras "independência" e "separação" referenciam situações diferentes, sugerindo que o liame construído historicamente entre elas não é tão cristalino quanto a princípio pode-se pensar. "Independência" designa liberdade ou autonomia. Uma sociedade é considerada "independente" quando possui as condições da autonomia política, isto é, quando detém o poder de elaborar as leis e de decidir o perfil do Estado e dos princípios essenciais que deverão rege-la. Já a expressão "separação" indica o ato pelo qual dois corpos ou entidades se distanciam, não possuindo necessariamente conotação política.

Em 1822, a palavra "independência" expressava a "condição do exercício da liberdade". Naquela época, liberdade e independência eram situações bastantes específicas, já que somente poderiam se concretizar no interior de governos constitucionais. Tratava-se, assim, de questão histórica e política explicitada pelo desenrolar das revoluções inglesas do século XVII e dos movimentos revolucionários que se manifestaram na Europa e na América entre os séculos XVIII e XIX, a exemplo da Revolução Francesa e das guerras de independência norte-americanas. 

A partir dessas referências, várias indagações podem ser formuladas em relação à Independência do Brasil. Que circunstâncias poderiam auxiliar na compreensão da dinâmica da sociedade que se constitui na América portuguesa, no início do século XIX? Que situações e fundamentos permitiram que essa sociedade (ou parcelas significativas dela) se considerasse capacitada para exercer a autonomia política e pleitear um lugar entre as demais nações do mundo?

A mais recente produção acadêmica e editorial brasileira dedicada ao tema tem procurado encaminhar essas e muitas outras indagações. Procura-se reconstituir, pela mediação de fontes variadas e diferentes metodologias, as significações mais abrangentes de lutas políticas que não se resumem à sequência cronológica mais conhecida, geralmente situada entre o movimento revolucionário em Portugal, deflagrado em agosto de 1820, e a proclamação de 7 de setembro de 1822.

Predomina  atualmente o reconhecimento de que a Independência foi um dos momentos históricos cruciais do prolongado processo de lutas políticas que resultou na construção do Estado Nacional e da nação na primeira metade do século XIX. Prevalece a compreensão de que, entre 1820 e 1822, quer no Rio de Janeiro quer nas demais províncias, estavam em confronto grupos de interesses, defensores de propostas divergentes, e que ganhava ampla repercussão nessa época a possibilidade de declarar-se a Independência sem que houvesse a separação de Portugal. Isso porque, desde de 1817, desenvolvia-se intenso debate em torno da reorganização de um império português fundamentado em governo constitucional e representativo, obra política que deveria garantir a unidade, mas no âmbito de nova ordenação entre os reinos do Brasil e  de Portugal. Todavia, durante a institucionalização do Estado Liberal, em decorrência da Revolução do Porto, evidenciaram-se profundas incompatibilidades entre os interesses dos "portugueses" de ambos os lados do Atlântico, o que provocou o reajustamento das pretensões e projetos de grupos mercantis, enraizados no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em São Paulo, que se voltaram para a opção separatista tendo à frente D. Pedro.

Nesse sentido, a tradicional associação entre independência, separação da antiga metrópole e conflitos de caráter colonial deu lugar a interrogações que procuram evidenciar as peculiaridades da configuração de um corpo político autônomo, no início do século XIX, denominado Império do Brasil.


Extraído do livro:
DICIONÁRIO DE DATAS DA HISTÓRIA DO BRASIL
Circe Bittencourt (org)

sábado, 5 de setembro de 2015

Onde está o humano no cristão?

Por Erivan Silva

O cristão em sua febril busca por perfeição se desumaniza a cada ato, a cada ritual... "Sede perfeitos como perfeito é vosso pai que está nos céus." O crente seguramente acredita que está seguindo um pessoa. Mas, na verdade, se converteu à uma ideia e desde então a nutre e a segue personificadamente. O apóstolo Paulo a certa altura de sua carta aos filipenses, chega a afirmar: "Não que eu já o tenha alcançado [ressurreição] ou que já seja perfeito, mas prossigo para ver se o alcanço, pois que também já fui alcançado por Cristo Jesus." Para quem conhece as cartas paulinas sabe que ele pregava a ressurreição do corpo; ressurreição de um corpo perfeito, incorruptível. Em outras palavras, Paulo acreditava que com a ressurreição do corpo viria a perfeição. Agora, o que em suma significa ser perfeito é uma questão que a Bíblia não deixa claro. E, além do mais, a experiência nos mostra que humano algum é perfeito, e que o erro (pecado para os cristãos) é até necessário para o aprendizado e o desenvolvimento humano.

Onde está o humano que se manifesta no cristão quando este nega sua própria sexualidade, nega seu corpo, nega sua (única) vida em nome de uma ideia/anseio que ele chama de Deus ou Jesus?

Nietzsche acertadamente pergunta: Que validade tem, afinal de contas, ser cristão se este vive ameaçado pela terrível punição de ser excluído da presença de Deus se não se comportar "bem"? Se não se enquadrar na sua "moral"?

domingo, 23 de agosto de 2015

Paradoxo do hipócrita

"O homem não suporta sua realidade. Não se vê como é. Como dizemos hoje em dia, o homem é ideológico a respeito de si mesmo. Produz imagens irreais sobre o seu próprio ser." Paul Tillich

Utilizo aqui o texto tillichano como pano de fundo para aquilo que eu chamo de o paradoxo do hipócrita. Isto é, o homem sempre representa um papel, tanto para a sociedade, quanto para si próprio. As imagens irreais que ele produz sobre si são sempre nobres, mesmo que ele seja um canalha. Neste sentido, a filósofa brasileira Márcia Tiburi diz que:

É muito fácil encontrar alguém com um temperamento melancólico que costume se autodepreciar. Há quem se diga feio, burro, mau, louco. Ninguém, no entanto, se autointitula canalha, adjetivo que expõe o máximo grau subjetivo da falta de ética. Infelizmente, o canalha se esconde. Mas mesmo que se mostrasse, a exposição de sua verdade não seria suficiente para mudar seu rumo subjetivo. A escolha do canalha está sempre dada: ele vai escolher em favor de si mesmo, mesmo que não precise de nenhum favor, mesmo que não saiba de que se trata de uma escolha.

Por que paradoxo? simplesmente porque por mais hipócrita que eu seja, tenho para mim que estou sendo original/autêntico. Por não suportar minha própria realidade enceno, tal qual um ator (grego hipócrités) um papel importante de uma fantasia que eu mesmo criei. Certamente a realidade não é tão amigável com nosso querido "EU"... Os fracassados sempre permanecerão anônimos. Sendo assim, o homem se permite "encenar". Isto é, aquele que fracassou não fui "eu", apenas uma personagem que eu próprio criei...

Isso eu chamo de paradoxo

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Hino a Deus

1

No fundo dos vales escuros morrem os famintos.
Mas você lhes mostra o pão e os deixa morrer.
Mas você reina eterno e invisível
Radiante e cruel, sobre o plano infinito.


2

Deixou os jovens morrerem, e os que fruíam a vida
Mas os que desejavam morrer, não permitiu...
Muitos daqueles que agora apodrecem
Acreditavam em você, e morreram confiantes.

3

Deixou os pobres pobres, ano após ano
Porque o desejo deles era mais belo que o seu céu
Infelizmente morreram antes que chegasse com a luz
Morreram bem-aventurados, no entanto - e apodreceram
                imediatamente.

4

Muitos dizem que você não existe e que é melhor assim.
Mas como pode não existir o que pode assim enganar?
Se tantos vivem de você, e de outro modo não poderiam morrer
Diga-me, que importância pode ter então que você não exista?

Bertolt Brecht (Poemas 1913-1956)

domingo, 4 de janeiro de 2015

Não me conformo

Hoje, mexendo nos meus livros, encontrei um poema da poetisa americana Edna St. Vincent Millay.
 Impossível esquece-lo...
Carregado de magia flerta com a minha tristeza e coroa de majestade a minha saudade.
Tudo fica meio paradoxal: sinto saudades de quem está comigo; das pessoas dos retratos, das memórias... Sinto saudades de quem já foi mas permanece. É o que afoga nosso coração em lágrimas, e faz com que a perda da vida daqueles que morrem se torne a morte daqueles que ficam vivos. (Agostinho - Confissões)


Sinto a necessidade de compartilhar o poema da Edna, e que cada um medite com sua própria experiência de luto.

Não me resigno quando depositam corações amorosos na terra dura.
É assim, assim será para sempre:
entram na escuridão os sábios e os encantadores.
Coroados de lírios e louros, lá se vão:
mas eu não me conformo.

Na treva da tumba lá se vão, com seu olhar sincero, o riso, o amor;
vão docemente os belos, os ternos, os bondosos;
vão-se tranquilamente os inteligentes, os engraçados, os bravos.

Eu sei.
Mas não aprovo.
E não me conformo.

 

sábado, 3 de janeiro de 2015

Lutos e Rituais

Já faz algum tempo que abandonei o cristianismo como prática religiosa. Tal abandono deve-se em parte pelo contato com as correntes filosóficas (especialmente o existencialismo); em parte, pelo desencanto com a religião propriamente dita; pelo esvaziamento de significados existenciais; pelo desgaste que o conceito "Deus" sofreu ao longo dos séculos. Em fim, por uma vontade de ser liberto exatamente por aquela que promete liberdade, mas aprisiona: a "verdade". Não acredito que verdade alguma liberte alguém, pelo contrário: a verdade aprisiona aquele que nela crê.

Isso não quer dizer que eu seja um ateu militante, mas um agnóstico em paz. Penso que é absolutamente possível sermos admiradores do Cristo sem contudo toma-lo como Deus. 

Deus? Quem é Deus se não um Ser abstrato que para mim não faz o mínimo sentido. Karen Armstrong parece ter tido a mesma experiência que tive quando escreveu:

Na verdade, o inferno parecia uma realidade mais poderosa que Deus, porque era algo que eu podia apreender intelectualmente. Deus, por outro lado, era uma figura um tanto difusa, definida em abstrações intelectuais, e não em imagens.

Rob Bell inteligentemente nos avisa que há uma sensação crescente de que estamos no fim de uma era e no começo de outra, num momento em que o nosso velho modo de compreender e de falar sobre Deus está morrendo enquanto algo diferente está sendo gestado.

Definitivamente temos um problema com Deus (quem é Deus, afinal?) Não apenas um problema de definição, mas, um problema de sentido. Não escrevo aqui para resolver este problema (isso é impossível) apenas para compartilhar ideias.

Segue abaixo o trecho de um livro que muito contribuiu para minha soteriologia filosófica.

Lutos e rituais 

 A maior força das religiões? Não é, ao contrário do que se diz com tanta frequência, tranquilizar os crentes em faca da morte. A perspectiva do inferno é mais inquietante que a do nada. Aliás, era o principal argumento de Epicuro contra as religiões de seu tempo: elas dão a morte uma realidade que a morte não tem, encerrando assim os vivos, absurdamente, no medo de um perigo puramnte fantasmático (o inferno), que chega até mesmo a lhes estragar os prazeres da existência. Contra o que Epicuro ensinava que "a morte não é nada", nem para os vivos, já que não se apresenta enquanto são vivos, nem para os mortos, já que eles não existem mais. Ter medo da morte é, portanto, ter medo de nada. Isso não suprime a angústia (que nossos psiquiatras definem justamente como um medo sem objeto real), mas coloca-a em seu devido lugar e ajuda a superá-la. É a imaginação que se aterroriza em nós. É a razão que tranquiliza. Do nada, pensando-o estritamente, não há por definição nada a temer. Ao contrário, há algo mais aterrador do que a perspectiva de uma danação eterna? É verdade que muitos cristãos deixaram de acreditar nela. O inferno seria apenas uma metáfora; somente o paraíso deveria ser levado ao pé da letra. Nada detém o progresso...

Os ateus não tem tais preocupações. Eles se aceitam mortais, como podem, e se esforçam para domar o nada. Conseguirão? Eles não se preocupam muito com isso. A morte levará tudo, até as angústias que lhes inspira. A vida terrestre lhes importa mais, e lhes basta.

Resta a morte dos outros, e ela é muito mais real, muito mais dolorosa, muito mais insuportável. É aí que o ateu fica mais exposto. Aquele ser que ela amava mais que tudo - seu filho, seus pais, seu cônjuge, seu melhor amigo - lhe é arrebatado pela morte. Como ele não se sentiria dilacerado? Nenhum consolo para ele, nenhuma compensação, apenas, às vezes, esta pequena tranquilidade: a ideia de que, pelo menos, o outro não sofrerá mais, de que não tem de suportar esse horror, essa perda, essa atrocidade... Levará muito tempo para que a dor se atenue, pouco a pouco, para que se torne suportável, para que a lembrança daquele que perdemos, de chaga aberta que era de início, se transforme progressivamente em saudade, depois em doçura, depois em gratidão, quase em felicidade... Nós nos dizíamos: "Como é atroz ele não estar mais aqui!" Passam-se os anos, e eis que nos dizemos: "Que bom ele ter vivido, que nos tenhamos encontrado, conhecido, amado!" Trabalho do luto: trabalho do tempo e da memória, da aceitação e da fidelidade. Mas na hora é, evidentemente, impossível. Como gostaríamos então de crer em Deus! Como invejamos, às vezes, os que creem nele! Reconheçamos: é esse ponto forte das religiões, aquele em que elas são praticamente imbatíveis. Será essa uma razão para crer? Para alguns, sem dúvida. Para outros, eu entre eles, seria antes uma razão para se recusar a crer, por considerar que o contrário seria, como se diz, uma apelação demasiado grosseira, ou simplesmente por orgulho, por raiva, por desespero. Estes, apesar da dor, sentem-se como que fortalecidos em seu ateísmo. A revolta diante do pior parece-lhes mas justa que a prece. O horror, mais verdadeiro que o consolo. a paz para eles, virá mais tarde. O luto não é uma corrida contra o tempo.

Há outra coisa, que não é mais do âmbito do pensamento, mas dos atos, em todo caso dos gestos e de uma certa forma, tão preciosa, de efetuá-los juntos. É que, quando se perde um ente querido, a religião traz não apenas um consolo possível, mas também um ritual necessário, um cerimonial, ainda que sem fasto, como que uma delicadeza última, em face da morte do outro, que ajudaria a enfrentá-la, a integrá-la, em fim a aceitá-la, pois a isso temos de chegar, ou em todo caso vive-la. Um velório, uma oração, cantos, preces, símbolos, atitudes, ritos, sacramentos... É uma maneira de controlar o horror, de humanizá-lo, de civilizá-lo, e sem dúvida é necessário. Não se enterra uma pessoa como se enterra um animal. Não se crema uma pessoa como se queima uma acha de lenha. O ritual assinala essa diferença, salienta-a, confirma-a, e é isso que o torna quase indispensável. É o caso do casamento, para os que o julgam necessário, em face do amor ou do sexo. É o caso dos funerais, em face da morte.

... Nossos funerais laicos quase sempre tem algo de pobre, de banal, de factício, como uma cópia que não consegue fazer esquecer o original. Talvez seja uma questão de tempo. Não se substitui de uma hora para outra 2000 anos de emoção e de imaginário. Mas há mais que isso, sem dúvida. A força da religião, nesses momentos, não é mais que nossa própria fraqueza em face do nada. É o que a torna necessária, para si mesmos. Mas não de consolo nem de ritos, quando um luto por demais atroz os atinge. As igrejas aí estão para eles. E não vão desaparecer tão cedo.

"Creio em Deus, porque senão seria muito triste", disse-me um dia uma leitora. Isso, que por certo não é um argumento ("pode ser que a verdade seja triste", dizia Renan), deve no entanto ser levado em conta. Eu ficaria zangado comigo mesmo se levasse a perder a fé quem dela necessita ou, simplesmente, quem vive melhor graças a ela. E estes são incontáveis. Alguns são admiráveis reconheçamos que há mais santos entre os crentes do que entre os ateus; isso não prova nada quanto à existência de Deus, mas proíbe que se despreze a religião, a maioria dignos de estima. A fé deles não me incomoda nem um pouco. Por que eu deveria combatê-la? Não faço proselitismo ateu. Procuro simplesmente explicar minha posição, argumentá-la, e mais por amor à filosofia do que por ódio à religião. Há espíritos livres nos dois campos. É a eles que me dirijo. Deixo os outros, crentes ou ateus, às suas certezas.

Pode-se viver sem religião? Vê-se que a resposta, de um ponto de vista individual, é ao mesmo tempo simples e matizada: há indivíduos, sou um deles, que passam muito bem sem ela, na vida cotidiana, ou que passam como podem, quando um luto as atinge. Isso não significa que todos possam e devam viver sem ela. O ateísmo não é nem um dever nem uma necessidade. A religião também não. Só nos resta aceitar nossas diferenças. A tolerância é a única resposta satisfatória à nossa questão, assim entendida.

Sugestão de leitura

COMTE-SPONVILLE, André. Espírito do ateísmo, O. São Paulo Martins Fontes, 2007 
BELL, Rob. Quem é Deus afinal? Rio de Janeiro. sextante, 2013
ARMSTRONG, Karen. Uma história de Deus. São Paulo. Cia das letras, 1993