quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Hino a Deus

1

No fundo dos vales escuros morrem os famintos.
Mas você lhes mostra o pão e os deixa morrer.
Mas você reina eterno e invisível
Radiante e cruel, sobre o plano infinito.


2

Deixou os jovens morrerem, e os que fruíam a vida
Mas os que desejavam morrer, não permitiu...
Muitos daqueles que agora apodrecem
Acreditavam em você, e morreram confiantes.

3

Deixou os pobres pobres, ano após ano
Porque o desejo deles era mais belo que o seu céu
Infelizmente morreram antes que chegasse com a luz
Morreram bem-aventurados, no entanto - e apodreceram
                imediatamente.

4

Muitos dizem que você não existe e que é melhor assim.
Mas como pode não existir o que pode assim enganar?
Se tantos vivem de você, e de outro modo não poderiam morrer
Diga-me, que importância pode ter então que você não exista?

Bertolt Brecht (Poemas 1913-1956)

domingo, 4 de janeiro de 2015

Não me conformo

Hoje, mexendo nos meus livros, encontrei um poema da poetisa americana Edna St. Vincent Millay.
 Impossível esquece-lo...
Carregado de magia flerta com a minha tristeza e coroa de majestade a minha saudade.
Tudo fica meio paradoxal: sinto saudades de quem está comigo; das pessoas dos retratos, das memórias... Sinto saudades de quem já foi mas permanece. É o que afoga nosso coração em lágrimas, e faz com que a perda da vida daqueles que morrem se torne a morte daqueles que ficam vivos. (Agostinho - Confissões)


Sinto a necessidade de compartilhar o poema da Edna, e que cada um medite com sua própria experiência de luto.

Não me resigno quando depositam corações amorosos na terra dura.
É assim, assim será para sempre:
entram na escuridão os sábios e os encantadores.
Coroados de lírios e louros, lá se vão:
mas eu não me conformo.

Na treva da tumba lá se vão, com seu olhar sincero, o riso, o amor;
vão docemente os belos, os ternos, os bondosos;
vão-se tranquilamente os inteligentes, os engraçados, os bravos.

Eu sei.
Mas não aprovo.
E não me conformo.

 

sábado, 3 de janeiro de 2015

Lutos e Rituais

Já faz algum tempo que abandonei o cristianismo como prática religiosa. Tal abandono deve-se em parte pelo contato com as correntes filosóficas (especialmente o existencialismo); em parte, pelo desencanto com a religião propriamente dita; pelo esvaziamento de significados existenciais; pelo desgaste que o conceito "Deus" sofreu ao longo dos séculos. Em fim, por uma vontade de ser liberto exatamente por aquela que promete liberdade, mas aprisiona: a "verdade". Não acredito que verdade alguma liberte alguém, pelo contrário: a verdade aprisiona aquele que nela crê.

Isso não quer dizer que eu seja um ateu militante, mas um agnóstico em paz. Penso que é absolutamente possível sermos admiradores do Cristo sem contudo toma-lo como Deus. 

Deus? Quem é Deus se não um Ser abstrato que para mim não faz o mínimo sentido. Karen Armstrong parece ter tido a mesma experiência que tive quando escreveu:

Na verdade, o inferno parecia uma realidade mais poderosa que Deus, porque era algo que eu podia apreender intelectualmente. Deus, por outro lado, era uma figura um tanto difusa, definida em abstrações intelectuais, e não em imagens.

Rob Bell inteligentemente nos avisa que há uma sensação crescente de que estamos no fim de uma era e no começo de outra, num momento em que o nosso velho modo de compreender e de falar sobre Deus está morrendo enquanto algo diferente está sendo gestado.

Definitivamente temos um problema com Deus (quem é Deus, afinal?) Não apenas um problema de definição, mas, um problema de sentido. Não escrevo aqui para resolver este problema (isso é impossível) apenas para compartilhar ideias.

Segue abaixo o trecho de um livro que muito contribuiu para minha soteriologia filosófica.

Lutos e rituais 

 A maior força das religiões? Não é, ao contrário do que se diz com tanta frequência, tranquilizar os crentes em faca da morte. A perspectiva do inferno é mais inquietante que a do nada. Aliás, era o principal argumento de Epicuro contra as religiões de seu tempo: elas dão a morte uma realidade que a morte não tem, encerrando assim os vivos, absurdamente, no medo de um perigo puramnte fantasmático (o inferno), que chega até mesmo a lhes estragar os prazeres da existência. Contra o que Epicuro ensinava que "a morte não é nada", nem para os vivos, já que não se apresenta enquanto são vivos, nem para os mortos, já que eles não existem mais. Ter medo da morte é, portanto, ter medo de nada. Isso não suprime a angústia (que nossos psiquiatras definem justamente como um medo sem objeto real), mas coloca-a em seu devido lugar e ajuda a superá-la. É a imaginação que se aterroriza em nós. É a razão que tranquiliza. Do nada, pensando-o estritamente, não há por definição nada a temer. Ao contrário, há algo mais aterrador do que a perspectiva de uma danação eterna? É verdade que muitos cristãos deixaram de acreditar nela. O inferno seria apenas uma metáfora; somente o paraíso deveria ser levado ao pé da letra. Nada detém o progresso...

Os ateus não tem tais preocupações. Eles se aceitam mortais, como podem, e se esforçam para domar o nada. Conseguirão? Eles não se preocupam muito com isso. A morte levará tudo, até as angústias que lhes inspira. A vida terrestre lhes importa mais, e lhes basta.

Resta a morte dos outros, e ela é muito mais real, muito mais dolorosa, muito mais insuportável. É aí que o ateu fica mais exposto. Aquele ser que ela amava mais que tudo - seu filho, seus pais, seu cônjuge, seu melhor amigo - lhe é arrebatado pela morte. Como ele não se sentiria dilacerado? Nenhum consolo para ele, nenhuma compensação, apenas, às vezes, esta pequena tranquilidade: a ideia de que, pelo menos, o outro não sofrerá mais, de que não tem de suportar esse horror, essa perda, essa atrocidade... Levará muito tempo para que a dor se atenue, pouco a pouco, para que se torne suportável, para que a lembrança daquele que perdemos, de chaga aberta que era de início, se transforme progressivamente em saudade, depois em doçura, depois em gratidão, quase em felicidade... Nós nos dizíamos: "Como é atroz ele não estar mais aqui!" Passam-se os anos, e eis que nos dizemos: "Que bom ele ter vivido, que nos tenhamos encontrado, conhecido, amado!" Trabalho do luto: trabalho do tempo e da memória, da aceitação e da fidelidade. Mas na hora é, evidentemente, impossível. Como gostaríamos então de crer em Deus! Como invejamos, às vezes, os que creem nele! Reconheçamos: é esse ponto forte das religiões, aquele em que elas são praticamente imbatíveis. Será essa uma razão para crer? Para alguns, sem dúvida. Para outros, eu entre eles, seria antes uma razão para se recusar a crer, por considerar que o contrário seria, como se diz, uma apelação demasiado grosseira, ou simplesmente por orgulho, por raiva, por desespero. Estes, apesar da dor, sentem-se como que fortalecidos em seu ateísmo. A revolta diante do pior parece-lhes mas justa que a prece. O horror, mais verdadeiro que o consolo. a paz para eles, virá mais tarde. O luto não é uma corrida contra o tempo.

Há outra coisa, que não é mais do âmbito do pensamento, mas dos atos, em todo caso dos gestos e de uma certa forma, tão preciosa, de efetuá-los juntos. É que, quando se perde um ente querido, a religião traz não apenas um consolo possível, mas também um ritual necessário, um cerimonial, ainda que sem fasto, como que uma delicadeza última, em face da morte do outro, que ajudaria a enfrentá-la, a integrá-la, em fim a aceitá-la, pois a isso temos de chegar, ou em todo caso vive-la. Um velório, uma oração, cantos, preces, símbolos, atitudes, ritos, sacramentos... É uma maneira de controlar o horror, de humanizá-lo, de civilizá-lo, e sem dúvida é necessário. Não se enterra uma pessoa como se enterra um animal. Não se crema uma pessoa como se queima uma acha de lenha. O ritual assinala essa diferença, salienta-a, confirma-a, e é isso que o torna quase indispensável. É o caso do casamento, para os que o julgam necessário, em face do amor ou do sexo. É o caso dos funerais, em face da morte.

... Nossos funerais laicos quase sempre tem algo de pobre, de banal, de factício, como uma cópia que não consegue fazer esquecer o original. Talvez seja uma questão de tempo. Não se substitui de uma hora para outra 2000 anos de emoção e de imaginário. Mas há mais que isso, sem dúvida. A força da religião, nesses momentos, não é mais que nossa própria fraqueza em face do nada. É o que a torna necessária, para si mesmos. Mas não de consolo nem de ritos, quando um luto por demais atroz os atinge. As igrejas aí estão para eles. E não vão desaparecer tão cedo.

"Creio em Deus, porque senão seria muito triste", disse-me um dia uma leitora. Isso, que por certo não é um argumento ("pode ser que a verdade seja triste", dizia Renan), deve no entanto ser levado em conta. Eu ficaria zangado comigo mesmo se levasse a perder a fé quem dela necessita ou, simplesmente, quem vive melhor graças a ela. E estes são incontáveis. Alguns são admiráveis reconheçamos que há mais santos entre os crentes do que entre os ateus; isso não prova nada quanto à existência de Deus, mas proíbe que se despreze a religião, a maioria dignos de estima. A fé deles não me incomoda nem um pouco. Por que eu deveria combatê-la? Não faço proselitismo ateu. Procuro simplesmente explicar minha posição, argumentá-la, e mais por amor à filosofia do que por ódio à religião. Há espíritos livres nos dois campos. É a eles que me dirijo. Deixo os outros, crentes ou ateus, às suas certezas.

Pode-se viver sem religião? Vê-se que a resposta, de um ponto de vista individual, é ao mesmo tempo simples e matizada: há indivíduos, sou um deles, que passam muito bem sem ela, na vida cotidiana, ou que passam como podem, quando um luto as atinge. Isso não significa que todos possam e devam viver sem ela. O ateísmo não é nem um dever nem uma necessidade. A religião também não. Só nos resta aceitar nossas diferenças. A tolerância é a única resposta satisfatória à nossa questão, assim entendida.

Sugestão de leitura

COMTE-SPONVILLE, André. Espírito do ateísmo, O. São Paulo Martins Fontes, 2007 
BELL, Rob. Quem é Deus afinal? Rio de Janeiro. sextante, 2013
ARMSTRONG, Karen. Uma história de Deus. São Paulo. Cia das letras, 1993