terça-feira, 5 de julho de 2016

Há meros devaneios tolos a me torturar



No livro o Mito de Sísifo, Alberto Camus diz que a grande questão da filosofia é "porque eu não me mato?". Se você lembra do mito de Sísifo saberá que ele foi condenado pelos deuses a rolar uma pedra gigante até o topo de uma montanha, e, cada vez que ele chegava ao topo, a pedra rolava para baixo, novamente ele ia buscar e fazia todo o trabalho novamente e isso ad ifinitum. Daí surge a pergunta de Camus: porque não se matar e assim pôr um fim a todo esse trabalho em vão; a toda essa existência sem sentido, visto que não há esperança alguma?. Porque? Em algum livro que li, Nietzsche diz "Invejo aqueles que não tem esperança". Por que? porque não podem ser torturados com a esperança de dias melhores. A isso, Nietzsche chamará de Amor Fati, isto é, amor ao destino tal como ele é. Sabe, minha mente às vezes é um turbilhão de pensamentos, eu fico muito confuso com a vida, com a existência, com tudo... É como se minha consciência fosse minha enfermidade. Enfermidade sem cura. O que eu faço? É uma pergunta cuja resposta imagino que nunca terei. Assim como não tenho uma resposta para Camus: porque não me mato? Talvez nunca encontre uma resposta. O que me cabe então? Afivelar a máscara no rosto. Máscara de que está tudo bem... Sou forte e alegre com a vida que levo. O que há por traz da máscara? Definitivamente não é um homossexual ressentido (tenho certeza disso, tive o dobro da minha idade em mulheres. Amores que eu tive amores que me tiveram), mas é um cara sensível... que chora escondido, que tem um vazio imenso no coração e que é acompanhado por uma amiga: Solidão. Mesmo estando rodeado por pessoas, nunca me senti tão só como ultimamente. Ela (a Solidão) constantemente sussurra no meu ouvido: porque não se mata e para de carregar essa pedra? Não sei amiga. Minha vida quer fluir mas no  meio do caminho tem uma pedra, tem uma pedra no meio do caminho. Sei que tenho um potencial incrível (sem falsa modéstia) e sei que um ou outro me inveja, no caso, a minha vida. Já me disseram que tenho uma esposa linda, uma filha maravilhosa, que sou um cara inteligente... E eu invejando qualquer um só por não ser eu. Pode isso? Deixa eu lidar com minhas pedras e conversar com minha amiga Solidão.

Há meros devaneios tolos a me torturar!

Carta de um cara qualquer.

Abraços 

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Epiphania na Casa dos Budas ditosos - erotismo e redenção

"como tinha razão o Nelson Rodrigues: se todo mundo soubesse da vida sexual de todo mundo, ninguém se dava com ninguém"
- A Casa dos Budas ditosos, pág 52


Enquanto tu morrias eu te abraçava numa fúria alagada, numa sórdida doçura, minha alma era tua? o desejo era demasiado para a carne, que grande fogo vivo insuportável, que luz-ferida, que torpe dependência uma outra Hillé sussurrava muito fria e altiva, uma outra Hillé fingindo mansidão e langor, roliça, passiva, perla sobre o fastídio de los mármores.
Me queres?
Claro."
                                                            - A obscena Senhora D., pág 54

SONNETO DO COITO NA PENUMBRA [1627]
Em pleno "frango assado" está o casal
A xota, penetrada, se arreganha.
O pau, indo e voltando, dá signal
de que ja vae gozar onde se banha...
- Poesia Vaginal, pág 67




Eu sou daqueles que dizem que leitura erótica é essencial. Leiamos as ficções, as aventuras e o velho maniqueísmo como pano de fundo de toda história de herói. Mas jamais nos esqueçamos da nossa humanidade, dotada de sexualidade, de fantasias sexuais, de desejos ocultos que a ninguém revela. Confesso que a literatura erótica só me atraiu de uns poucos anos para cá. Até então, como todo garoto, o conformismo era uma revista Playboy; hoje, nada mais vulgar. Não, eu gosto da cena, das palavras, da imagem que criamos só para nós fazendo sexo com livros...

Lembra do Leoni?

Noite e dia se completam, no nosso amor  ódio eterno
Eu te imagino, eu te conserto, eu faço a cena que eu quiser
Eu tiro a roupa pra você, minha maior ficção de amor
Eu te recriei, só pro meu prazer

É disso que estou falando: erotismo sem vulgarização; sedução sem canalhice. Essa literatura é rara mas pode ser encontrada.
Octávio Paz resume sua "geometria passional" com as seguintes palavras: "O sexo é a raiz, o erotismo é tronco, e o amor é a flor". Seguindo o raciocínio do Octávio Paz, Gabriel Liiceanu, no seu livro Da sedução diz:

(...) Octavio Paz criou, como ele mesmo chama, uma "geometria passional". Compartilhamos, seguramente, com uma parte do mundo vivo - e esta é a base onde se assenta a "geometria passional" - a sexualidade. Mas ao lado deste fenômeno, que é "o mais antigo, o mais vasto e essencial", e, igualmente, "a fonte primordial", existem outros dois fenômenos que são "formas derivadas do instinto sexual - cristalizações, sublimações, perversões e condensações que transformam a sexualidade e, muitas vezes, a fazem irreconhecível." Esses dois fenômenos, que não podem ser encontrados senão no homem., são o erotismo e o amor. (...) O erotismo é a sexualidade domesticada no nível da espécie humana. (...) Já que é "flecha atirada ao transcendente", o erotismo encontra o ideal e pode evoluir igualmente bem para a castidade ou para a libertinagem. (...) o amor, representa a focalização extrema da sexualidade, o seu ponto mais afiado, o lugar em que o sexo se encarna, como unidade inconfundível de carne e espírito, na personalização suprema. Ao contrário do erotismo, cujo o objeto pode demorar-se no espaço da in-diferença (qualquer indivíduo, no espaço sexual, pode ser substituído por outro), o amor junta a passionalidade numa pessoa única objeto erótico único nascido no encontro entre predestinação e livre-arbítrio. Ambos eram predestinados um ao outro desde o começo dos tempos e, igualmente, se escolhem livremente. (1)

Eu acho que em literatura erótica encontramos esses dois fenômenos, isto é, erotismo e amor. Eles se confundem inclusive etimologicamente; pode-se dizer que amor enquanto desejo do objeto amado é erótico; e o erótico é amor desejante. A ontologia do amor leva a declaração básica de que o amor é único (2) mesmo que seja entendido em caráter modal como ágape, philia ou eros. Há ainda quem queira depreciá-lo somente ao nível da epithymia (desejo) isso em conotações sensuais. Ora, mesmo encarado pelos moralistas de plantão ainda assim estamos falando de amor, amor indivisível em sua ontologia. O amor é a liberdade e o seu avesso. O desejo sexual humano não pode ser transferido. A pessoa que deseja Jane, é absurdo perguntar  "porque não Elizabeth? Ela também serve". Afinal, o que ele quer é uma ação da qual Jane é constituinte e não só um instrumento. É verdade que Elizabeth poderia ser trocada por Jane, como Lia foi trocada por Raquel na história do casamento de Jacó no Antigo Testamento (Gn 29.21-28). Mas o desejo de Jacó não foi transferido para Lia. (3) desejo não se transfere; sensualidade, erotismo, nada disso é transferível.

Agora, falando de A Casa das budas ditosos, por que epiphania? Porque foi a palavra que encontrei para descrever minha sensação ante a leitura do livro. Do ponto de vista filosófico epiphania significa uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas. Ou seja, a sensação de considerar algo como solucionado, esclarecido ou completo. (lit. manifestação de algo).
De antemão já adianto ao leitor que é impossível não se encantar pela história (real ou imaginária) narrada pelo João Ubaldo Ribeiro. Se encantar e se excitar. É bem provável que o livro será lido de "pau duro" ou de "grelo molhado". Duvida? Faça você mesmo o teste. Melhor ainda, vou reproduzir apenas um trecho do livro para que leiamos juntos. Antes disso quero lembrar ao leitor que nossa confessante tem dois interesses em mente:

1) Que todos olhem pelo "buraco da fechadura". Assim desperta um fetichismo sexual nos leitores. Numa citação de Sartre (não lembro onde) li: "acariciar com os olhos e desejar são uma única e mesma coisa". Na música interpretada pela Maria GaduEle me comia com aqueles olhos de comer fotografia, eu disse X*. Comer com os olhos, acariciar com os olhos. Nossa personagem nos garante que no quesito safadeza todos somos iguais. (...) as pessoas leem romances, biografias, confissões e memórias porque querem saber se as outras pessoas são como elas. Não somente por isso, mas muito por isso. Querem saber se aquilo de vergonhoso que sentem é também sentido por outros, querem olhar mesmo pelo buraco da fechadura e, quanto mais olham, mais precisam olhar, nunca estarão saciadas. Faz bem, é reconfortante. Porque eu tenho a convicção de que a maior parte das mulheres e homens é como eu e pensa que não, cada um pensa que é único em suas maluquices. Não é, não, somos todos iguais. (pág 130)

2) "A segunda [intenção] é provocar tesão, quero que quem me ler fique com vontade de fazer sacanagem, pelo menos se masturbando". (pág 131)

Vamos à leitura propriamente dita:

(...) pôs a mão no meu ombro e disse "como vai você?".
- Vou bem, vou bem. Vou nervosa.
- Nervosa?
- O que é que você acha? Minhas pernas estão tremendo.



Estavam mesmo e ele ainda demorou para fazer alguma coisa além de botar a mão no meu ombro, até que finalmente desencantou e, agarrados mesmo, fomos para o quarto que dava porta para o corredor e onde Claude tinha sua cama de casal para receber rapazes, um quarto penumbroso dentro de uma floresta de quadros, esculturas e bibelôs, com parte do teto e uma parede cobertas por espelhos. Sentamos na cama olhando fixo um no outro, eu fazendo minha melhor cara de corça no cio alcançada pelo macho, sem nem precisar muito, porque estava mesmo fora de mim de tesão. Ele me desabotoou a blusa, eu o ajudei a tirá-la, com um sorriso leve, sem mostrar os dentes e baixando os olhos. Ele me beijou bem, já tinha aprendido comigo.  E pôs a mão no facho do meu sutiã, novidade tecnológica na época, um americano que Norman Lúcia me trouxe de presente, do tipo que soltava com uma pressãozinha dos dedos. Meus dois peitos pularam livres, trêfegos e lindos como luas cheias, as aréolas rosadas quase apontando para o alto, os bicos tensamente enrijecidos, as curvas delicadas se desdobrando em mil outras sem cessar, e ele enfiou o rosto no meio deles. Não sei como, logo estávamos nus e deitados juntos e resolvi que ficaria o mais quieta possível na cama e só me mexeria em caso de emergência, para evitar uma barbeiragem mais grave, enquanto ele descia a boca dos meus peitos para o umbigo e finalmente lá embaixo, que foi quando eu não me controlei e segurei a cabeça dele entre minhas pernas e gozei tão profundamente que achei que ia morrer. Quando parei de gozar, pensei que ele ia querer que eu  o chupasse também um pouco, e eu estava com vontade, mas, mal resvalei os lábios no pau dele, ele recuou os  quadris, ficou de joelhos diante de mim e me disse, encantadorissimamente, machissimamente no melhor sentido:



- Abra as pernas para mim.
Eu abri, ele curvou meus joelhos para cima, afastou minhas coxas ainda mais - ai, que momento lindo! - , encostou a glande  bem no lugar certo, agarrou meus ombros com os braços em gancho pelas minhas costas, abriu a boca para me beijar com a língua enroscada na minha e, num movimento único e poderoso, se enfiou em mim. Senti uma dor fina e quase um estalo, cheguei a querer deslizar de costas pelo colchão acima, mas ele somente enfiou-se em mim até o cabo e ficou lá dentro parado, me segurando forte, para só então terminar o beijo, erguer o tronco e começar a me foder, olhando para a minha cara. E então, com a expressão de homem mais bonita que já vi na minha vida e exalando um cheiro para sempre irreproduzível, gozou muito fundo dentro de mim e eu senti, senti mesmo, aquele jato me inundar gloriosamente aos borbotões, aquela pica grossa e macia pulsando ereta dentro de mim, ai! Eu não gozei, mas só tecnicamente, porque de outra forma gozei muito naquele momento, não posso descrever minha felicidade, minha profusão de sentimentos, me sentir mulher, me sentir fodida, me orgulhar de ter sido esporrada em meio a meu sangue, sem fricotes, como uma verdadeira fêmea deve ser inaugurada por um verdadeiro macho. Já li muitos livros eróticos e pornográficos,a maior parte detestável, já vi tudo, mas nada pode espelhar aquele instante, nada, nada, nada, nada, até hoje me masturbo pensando naquela hora, minha fantasia perfeitamente realizada. (4)

Confesse caro(a) leitor(a) é uma leitura fantástica não? É aproveitável alguma coisa em tipos de leitura como esta? Sim. Primeiramente a sutileza do autor nos deixa com uma incógnita: a mulher que tem 68 anos de idade (quando narra o ocorrido quando era jovem) e se apresenta apenas com as iniciais C.L.B é real ou fictícia? Ela (?) mesmo responde (...) é irresistível deixar as pessoas sem saber no que acreditar. Ainda encontrei três máximas com o livro:

1. É muito difícil encontrar alguém que não tenha alguma grande obsessão sexual, ou mais comumente, várias, geralmente reprimidas das formas mais inesperadas.

2. É muito difícil encontrar alguém que não se possa seduzir (...) É possível seduzir toda e qualquer pessoa.

3. Ninguém é alguma coisa de forma absoluta. Homem e mulher são construções históricas.

Levaria um certo tempo abordar cada um desses pontos, e serão abordados separadamente em outra publicação ou numa atualização desse mesmo texto por mim escrito. Como uma primeira proposta creio que até aqui está bom. Agora evoco e deixo como dica a Diva Hilda Hilst (1930-2004). H.H é reconhecida como um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea. Em uma entrevista em que foi interrogada da seguinte forma: Para escrever sobre sexo o escritor necessita de uma vida sexual extremamente variada? Hilst responde: Eu acho que não, porque o poeta não precisa passar pela morte ou por um montão de cadáveres para falar sobre ela. Você já tem um conhecimento da coisa, não precisa viver tudo para escrever. No meu caso específico, tive todas as alegrias sexuais possíveis.(5)

É na literatura erótica que tenho essa manifestação (epiphania) do humano, na nudez encontro a redenção da sensualidade. Nudez em nossa cultura tem assinatura teológica nos dirá Agamben (6) Não gosto das filosofias que desprezam o corpo. "Em geral, o erro da filosofia é se afastar da vida" (7) e isso inclui afastar-se do próprio ser integral. "Detrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um amo mais poderoso, um guia desconhecido, que se chama 'o próprio ser'. Habita em teu corpo; é teu corpo" (8) Eu tenho um corpo erótico e uma alma amante/desejante. São os dois fenômenos que nos fala Octávio Paz. Eles se encontram em mim. Sou erotizado e redimido seja nos traços de Milo Manara (9) seja no HQ da vida real de Chester Brown (10), na leitura de Bukowiski, na perversão de Hilda Hilst, na Vênus de quinze anos de  Swinburne (11) ou em Anna P.(12)... O importante é ser humano, demasiado humano.

Sexo é brinquedo 
Amar é brincar. Não leva a nada. Não é para levar a nada. Quem brinca já chegou. Fazer amor com uma mulher ou com um homem é brincar com seu corpo. Cada amante é brinquedo brincante. "Creio na ressurreição do corpo": não é a esperança de um milagre escatológico no fim dos tempos. É uma possibilidade de cada dia. Os sentidos precisam sair do túmulo onde os deveres os enterraram. (...) corpo brincante: é nele que acontece a alegria! (13)

* A História de Lili Braun - Música composta por Chico Buarque e Edu Lobo. 


Notas

(1) LIICEANU, Gabriel. Da Sedução. São Paulo. Ed Vide Editorial, 2015 pág 73-75.

(2) TILLICH, Paul. Amor, poder e justiça. São Paulo. Fonte Editorial, 2004. pág 37.

(3) SCRUTON, Roger. Rosto de Deus, o. São Paulo Ed É Realizações, 2012. pág 137.

(4) RIBEIRO, João Ubaldo. Casa dos Budas ditosos, A. Rio de Janeiro Ed Objetiva 1999. Pág 77-79.

(5) DINIZ, Cristiano (org). Fico besta quando me entendem - entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo Ed Biblioteca Azul, 2013. pág 141.

(6) AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Belo Horizonte Ed Autêntica 2014. pág 91. Nas palavras de Agamben "A nudez, é inseparável de uma assinatura teológica. Todos conhecem a narrativa do Gênesis segundo a qual  Adão e Eva, após o pecado, percebem pela primeira vez estarem nus" (...)

(7) BATAILLE, Georges. Erotismo, O. Belo Horizonte Ed Autêntica 2013. pág 36.

(8) NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Rio de Janeiro Ed Petrópolis 2008. pág 51.

(9) Milo Manara é um dos maiores desenhistas de Hq sensual do mundo. Alguns desenhos do artista italiano podem ser visto aqui http://papodehomem.com.br/milo-manara-mulheres-e-nanquim/ Manara tem um site oficial http://www.milomanara.it/ cosultados em 24/06/2016 ás 18h42min

(10) Autor do Hq Pagando por sexo, publicado no Brasil pela Ed Martins Fontes

(11) SWINBURNE, Charles. Venus de quinze anos. São Paulo Ed Hedra, 2014.

(12) ANNA P. Tudo que eu pensei mas não falei na noite passada. São Paulo Ed Hedra 2014.

(13) ALVES, Rubem. Ostra feliz não faz pérola.  São Paulo. Ed Planeta, 2008. pág 80.



Ainda foram consultados:

MATTOSO, Glauco. Poesia Vaginal - Cem sonetos sacanas. São Paulo Ed Hedra 2015.
CAROTENUTO, Aldo. Amar trair - quase uma apologia da traição. São Paulo. Ed Paulus 3ª ed 2011.
STOLLER, Robert. Perversão. São Paulo Ed Hedra, 2014.
HILST, Hilda. Com os meus olhos de cão. São Paulo. Ed Biblioteca azul 2001.
HILST, Hilda. Cartas de um sedutor. São Paulo Ed Biblioteca azul, 2014.
HILST, Hilda. Obscena senhora D., A. São Paulo Ed Biblioteca azul, 2016.
MUCHEMBLED, Robert. Orgasmo e o Ocidente, O. São Paulo Ed Martins Fontes, 2007.



segunda-feira, 20 de junho de 2016

Sinceridade e abandono - carta de alguém que desistiu e prefere manter o silêncio*


Resultado de imagem para silêncio  Eu me importei demais, talvez você nem imagine o quanto eu fui louca por você. Eu fiquei cega, fui inconsciente e imprudente com as minhas atitudes. Abri mão de muita coisa, estendi os meus dois braços e servi como apoio, quando a sua estrutura estava frágil. Me prejudiquei, mas nunca cheguei atrasada. Sempre estive adiantada, com surpresas, um colo quente, um carinho antes de dormir e, principalmente, com a minha indescritível ânsia em acertar, e te oferecer tudo aquilo que eu julguei que você merecesse ter e sentir. Acho que eu fui demais, para alguém de menos. Atropelei as nossas diferenças, que cedo ou tarde, eu sabia que iriam me dar um tapa na cara.

  Dito e feito, eu apanhei e acordei para a vida…
Quando os relacionamentos começam, temos o defeito de acreditar que estamos vivendo um conto de fadas. Nos iludimos com cada besteira, que parece ser impossível acontecer. Fazemos planos com alguém que nem conhecemos. Por vezes, esse desespero pode ser justificado por carência, ou medo de viver sozinha. Mas a realidade, se tratando de razão e emoção, é que somos ignorantes demais por depositar a nossa própria felicidade em um caso, do mero acaso, que nos encantou por um beijo, um abraço, um gesto ou qualquer detalhe fascinante, ao nosso ver. Somos apegados a comparações e, desse jeito, qualquer mínimo se torna máximo. Depositamos confiança e expectativas em alguém, praticamente, desconhecido. Apostamos em algo que, aceitando ou não, o coração já previu o final.
Ao longo desse tempo, eu tentei te fazer a pessoa mais feliz do mundo. Eu te ofereci o que estava ao meu alcance e, mesmo quando não estava, eu dei um jeito. Você sabe, como ninguém, o quanto eu sou leal à pessoa que caminha ao meu lado. Eu brigo, sim. Tomo as dores, defendo, me orgulho, torço junto e coloco o céu como limite. Levo às estrelas, à cada pôr do sol. Eu sou tudo o que você nunca teve, ou que nunca conheceu. Você me chamava, eu corria ao seu encontro. Estalava os dedos, eu aparecia em baixo do seu nariz. Não, isso ao meu ver não é ser trouxa. É amor. Você já gostou verdadeiramente de alguém? Ou já desejou muito que a sua relação desse certo? Pois bem, se a resposta for sim, você simplesmente faz acontecer. E acontece. De um jeito natural, intenso e gostoso.
Sabe aquela pessoa que você conheceu e se apaixonou? Não sei se você reparou, mas ela não existe mais. Ela morreu aqui dentro. Você, com todos os seus deslizes e fracassos, cometeu um suicídio. E não adianta me pedir para voltar a ser o que eu sempre fui, acabou. Não tem mais jeito. E, sabe, a cada dia, você me mostra que realmente não nascemos para somar. Você me subtraiu, e diminuiu. É triste, e bastante dolorido. Levei muito tempo para compreender e aceitar. Chorei, quieta e na minha. Discuti por intermináveis vezes, te falei o meu ponto de vista uma, duas, três vezes e além. Citei claramente o que me faltava, continuei sendo o que, muito provavelmente, depois de algum tempo você nem merecia mais. Fui mulher de te desculpar, e você covarde em repetir os erros.
Sou incapaz de ser aquele alguém que você conheceu e se apaixonou. Muita coisa mudou para mim, para nós. Eu já não estou mais tolerante, muito menos paciente. A idade vai passando e, tudo o que eu quero, é uma pessoa que me assuma. Bata no peito, enfrente o que for preciso me apoiando, sempre comigo e por mim. Eu não sei lidar com imparcialidade. Meu bem, eu não sou assim. Você está falando com alguém que apanhou muito, com feridas incuráveis. Talvez, hoje, você não entenda o que é se entregar de corpo e alma, mas eu tentei te mostrar de todas as formas. Desenhei, fiz mímica, escrevi e quase cantei para chamar a sua atenção e te fazer enxergar que eu já estava distante demais dos seus sonhos egoístas. Se você não consegue interpretar o significado da palavra reciprocidade, não faz sentido o meu desgaste em tentar te mostrar. Amanhã eu tenho certeza que você vai aprender. Mas será tarde demais, eu já estarei fora do seu alcance.
Eu não te encontro mais na minha prospecção de felicidade. Não idealizo, não fantasio e não insisto. Talvez você culpe a vida, ou a mim, por não ter dado certo. Mas eu continuo afirmando que, quem não cuida, não merece ter. Se eu realmente fosse sua, como você diz, você faria qualquer coisa por mim. Mas não, não, manter-se na comodidade e na mesmice dos seus atos sempre foi e sempre será, conveniente. A única diferença, é que não estou mais disposta a aceitar que tudo seja do seu jeito. As suas palavras já não tem mais valor, promessas são apenas promessas.
O meu silêncio para você, traduz tudo o que eu insistia em reafirmar e que agora já não faz mais sentido. Estou guardando a minha saliva para o necessário a ser dito. Eu tenho aceitado, com doses homeopáticas, ficar sem você. Mas você, meu bem, sempre valorizando terceiros e as suas tarefas, está deixando passar despercebido. Quando cair em si e olhar para frente, estarei bem atrás.
Como alguém que fez de tudo para ser notada e agora se tornou o seu passado. Se você quiser falar, sou toda ouvidos… Mas para mim, francamente, o fim é o futuro certo.
* Esse belo texto foi escrito por Jéssica Pellegrini com o título de O Silêncio É A Melhor Forma De Dizer: “Eu Desisti De Você”. Arbitrariamente escolhi outro título por achaar mais significativo. No demais, não fiz nenhuma alteração no texto.
http://jepellegrini.com.br/todos-os-posts/o-silencio-e-a-melhor-forma-de-dizer-eu-desisti-de-voce

Reproduzi-o por achar extremamente sincero e humano. Além disso, com certeza encontrará alguma alma que veja nele um real espelho da sua vida.

domingo, 19 de junho de 2016

Morte e suicídio em Bento Espinoza - conceito de caráter naturalista e "homicídio" imaginário


Por Erivan Silva


"Não sou mais aquele, não sou outro,
 sou a poeira da ampulheta virada para baixo,
 depois para cima, uma partícula do meu próprio cosmo que o 
tempo sopra para debaixo desse ciclo, nada mais, 
porque sei que lá atrás outros em mim existiram
 e lá adiante outros se multiplicarão na minha pele 
apesar dessa carcaça que se encolhe, se enruga, 
se transforma desde o ventre e se flagela com o passar dos anos.
 Passa, tempo! Passa logo tuas plumas de pedra no meu rosto 
e encerra essa história com os teus pulsares de silêncio, 
não peço mais do que isso, porque sabes que minha força 
parece derivar justamente do drástico, do derradeiro, do quase abismo." *

"Quando abriu o quarto selo, ouvi o quarto animal exclamar: Vem!
E eu vi: era um cavalo esverdeado.
Quem o montava chama-se "a Morte",
e o Hades o acompanhava." (Ap 6.7-8 TEB)



A morte é a grande muságete(1) da filosofia. Sua inspiração. Sua inspiradora. Desde que o humano tem consciência de si e dos demais seres, a morte tem se tornado motivo de preocupação. Afinal  "a morte está em todo lugar" nos dirá Sêneca, e o homem nada mais é do que um ser para (ou diante da) a morte, morte daqueles que o cercam bem como de sua própria morte.

Pode-se dizer que a morte foi preocupação onipresente em todos - ou quase todos - os filósofos. Ela é combustível de angústia para uns, escape ou porta de entrada para outra existência, ou ainda: um sono sem sonhos, i. é, um tipo de existência, visto que é matéria, sem consciência, para outros. Tal como no filme O Sétimo Selo(2) por mais que as personagens fujam da morte é ela a grande vitoriosa ao final de tudo. É ela quem os arrasta para o "Hades".
A casuística da morte parece interessante, comovente; razoável e inspiradora; clara e ao mesmo tempo cheia de mistérios insondáveis. É a atração pelo trágico.
Durante toda a Idade Média a morte esteve na ofensiva. Fazia parte do imaginário popular a ideia de uma vida post mortem. A invenção do paraíso e seu oposto, no caso inferno/purgatório surgiram nesse período (ou pelo menos recebeu a configuração tal como o conhecemos). Guerras civis e religiosas bem como as doenças ceifaram milhares de vidas. A morte era de fato um dos medos mais horríveis do período medieval; era onipotente e onipresente. Era o quarto cavaleiro do Apocalipse a quem chamam "a Morte"(3) 
Não é minha intenção fazer um levantamento sistemático e cronológico de todos aqueles que se debruçaram sobre o tema; não disponho de recurso para tal. De igual modo não tenho interesse em fazer um recorte histórico do período medieval cuja temática seja a morte(4); o que foi dito até aqui foi apenas de caráter introdutório. Tampouco é minha intenção fazer uma reflexão profunda sobre a temática propriamente dita. Primeiramente, não disponho de espaço suficiente e, em segundo lugar, quando analisamos o conceito morte ele se transfigura diante de nossos olhos. E para sermos honestos, para uma abordagem clara seria necessário tratar dos temas nucleares que a morte carrega ("... e o Hades o acompanhava" Ap 6.8). Esse "Hades" que acompanha a morte nada mais é que outros conceitos que lhe são inerentes, a saber: a angústia, o medo, a raiva, a saudade, a fascinação, o mal... Seria necessário de igual modo tratar de uma metafísica da morte, ou teologia da morte que se preocupa com a imortalidade e ressurreição. A essa escatologia individual cabe à teologia uma palavra de consolo, o que não temos a oferecer.
A mim cabe apenas refletir. Da combinação da ideia de morte total e da concepção da morte como evento natural, inato na finitude da vida humana com o saber antecipatório, ainda que indefinido, do ser humano sobre sua morte futura emergiu a tentativa filosófica de interpretar a morte como consumação da existência individual.(5) Desta combinação, morte total e morte como evento natural, abordarei esta última concepção sobretudo a partir da ótica espinoziana. Ainda, em um  segundo momento, abordarei um tema que  em princípio parece controverso no pensamento de Espinoza: o suicídio. Aqui reside a maior dificuldade pois segundo o autor da Ética:

"A mente, quer enquanto tem ideias claras
e distintas, quer enquanto tem ideias confusas,
esforça-se por perseverar em seu ser por uma
duração indefinida, e está consciente desse seu
esforço" (E 3,9)

Em outras palavras, Espinoza utiliza aqui aquilo que ele chama de conatus, i. é, o esforço que cada componente da Natureza faz para conservar sua existência. No homem, esse esforço vai das necessidades mais básicas, como comer, beber, dormir e abrigar-se, às mais elaboradas, como produzir cultura. Nesse sentido, o homem não "escolhe" manter-se vivo. Ele é  levado, pelo conatus, a agir para isso. Dito isto, a problemática está posta: Se o conatus é o esforço de conservar a própria existência porque alguns (e não poucos) cometem suicídio? Esta pergunta será abordada em um segundo momento.

O conceito de caráter naturalista

A morte não é bela nem feia: a sua beleza ou feiura
é preparada por toda a vida, que, se bela e "boa", faz
belo e bom o ato de morrer. Uma  "boa  morte",   no
sentido mais forte, é "viver" o momento na presença
da vida  inteira  e da  existência integral  com toda a
humanidade da qual o homem faz parte.
- M.F. Sciacca

Benedicto (ou Bento) de Spinoza (1632-1677) viveu em um século marcado por tumulto científico, intelectual, político e religioso que deu origem a muitos "sistemas" filosóficos. Embora tenha participado animadamente desses impasses intelectuais de sua época, a filosofia, para Espinoza, não era uma arma, mas um modo de vida, uma ordem sagrada cujos servidores eram transportados para uma felicidade suprema e certa.(6) Espinoza foi inovador e bastante original, mesmo sendo de origem judaica reformulou todo o conceito de Deus. Um Deus que até então era tido como transcendente, passa agora a ser visto como imanente; um Deus panteísta, deísta... ou seja, a "força racional e necessária que rege a realidade segundo leis inteligíveis", explica Marilena Chaui. Isso, obviamente causou espanto entre seus pares e lhe custou a expulsão e excomunhão. Ele foi amaldiçoado.

Maldito seja ele de dia, e maldito seja de noite; maldito seja quando deita, e maldito quando levanta; maldito seja quando sai e maldito seja quando retorna, o Senhor não o perdoará; a cólera e a fúria do Senhor se acenderão contra esse homem e trarão sobre ele todas as maldições escritas no livro da Lei; e o Senhor apagará seu nome debaixo do céu; e, por sua má conduta, o afastará das tribos de Israel, com todas as maldições do firmamento escritas no livro da Lei (...) Ordenamos que ninguém se comunique com ele verbalmente ou por escrito, nem lhe faça qualquer favor, nem permaneça a menos  de quatro côvados dele, nem leia qualquer coisa composta ou escrita por ele.

De fato Espinoza foi chamado de sabotador espiritual, subversor das coisas legalmente estabelecidas e um advogado do diabo. Quiçá, mexeu com tabus. Entre esses tabus inclui-se o da morte. O que era a morte para Espinoza?

Primeiramente é preciso entender que para Espinoza "os homens não  são criados, mas somente gerados; os seus corpos existiam antes, embora formados de outro modo". Gerados, isto é, um produto da natureza, da sua própria essência: Cada homem, é assim, um indivíduo estendido; um retalho de tecido, um modo finito do atributo infinito da extensão. O homem enquanto matéria é pré-existente. Em suma, a morte é uma necessidade imanente. Segundo Sciacca "Na existência de duração ou temporal, os indivíduos, partes da natureza, estão sujeitos às vicissitudes do devir, que os modificam incessantemente, e a morte é uma das tantas modificações de suas essências"(7). Aqui temos a sutil diferença entre imortalidade e eternidade. O homem, nessa concepção é eterno, não imortal. Sendo assim, a morte, é apenas algo "natural". É o retorno à Natureza eterna. Michele Federico Sciacca torna mais  claro ao afirmar "aquela que Espinoza chama experiência da minha eternidade é experiência da própria Eternidade naquele 'modo' finito e transeunte  que eu sou. É suficiente unir a ideia do meu corpo àquela de Deus e não a uma causa externa; pôr o meu ser na eternidade divina, enquanto o ser de mim gerado e não criado não existe o ser deste ou daquele homem: existe somente modos contingentes, 'indivíduos extensos', cuja forma varia na infinitude dos atributos, sem que nada suceda na ordem imutável e indiferente da Necessidade. Espinoza afirma que a mente humana não pode ser destruída absolute com o corpo que ela aliquid permanet quod aeternum est, mas para acrescentar em seguida  que se lhe pode atribuir uma duração determinável no tempo, só enquanto exprime a atual existência do corpo". Seguindo essa mesma linha de pensamento, Sciacca prossegue afirmando que: um aliquid impessoal,  que existiu antes de vestir um corpo e existente eternamente depois, sem que isso tenha alguma memória. Aqui a diferença entre vida no tempo e a morte: no tempo, eu existo segundo o modo; depois da morte, de essência não mudada, existo segundo a substância, isto é, na eternidade sem modos e  sem tempo.
Passamos a primeira parte.

"Homicídio" imaginário - Há mesmo suicídio?


Le soleil ni la mort ne se peuvent  regarder en face
Nem o Sol nem a morte podem ser olhados fixamente
- La Rochefoucauld


Vimos que para Espinoza a morte é imanentemente necessária. A morte não é uma punição como pensava Pascal. Espinoza entendia que embora vá ocorrer necessariamente, não faz parte da natureza de uma coisa. Aliás, nem poderia ser diferente, já que toda coisa é entendida como um esforço para perseverar na existência conforme vimos acima no conceito de conatus.

Na proposição 4 da parte 3 da Ética, lemos:

Nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior.
Demonstração. Esta proposição é evidente por si mesma. Pois a definição de uma coisa qualquer afirma a sua essência; ela não a nega. Ou seja, ela põe a sua essência; ela não a retira. Assim, à medida que consideramos apenas a própria coisa e não as causas exteriores, não poderemos encontrar nela nada que possa destruí-la.

Dito de outra maneira, a morte sempre vem de fora. Isso não significa que o esforço poderá sempre superar os obstáculos externos: Espinoza diz que, dada uma coisa, sempre há outra mais potente que pode destruí-la. Por isso, as coisas necessariamente morrem, e, nesse sentido, a morte é natural(8) como vimos acima. "Todavia, a morte só é natural em função da totalidade da Natureza, que abrange muitas coisas nocivas umas às outras, mas não em função da natureza da própria coisa que morre. (Luís César Oliva). Se a morte é algo externo como se explica o fato de que algumas pessoas simplesmente põe fim a própria vida? Se tal coisa é esforço de preservar na existência, e, no caso do ser humano, desejo de viver, como pode dar-se que alguns homens se suicidem? A Ética nos responde no escólio 20 da parte 4:

Escólio. Ninguém, portanto, a não ser que seja dominado por causas exteriores e contrárias à sua natureza, descuida-se de desejar o que lhe é útil, ou seja, de conservar o seu ser. Quero com isso, dizer que não é pela necessidade de sua natureza, mas  coagido por causas exteriores, que alguém se  recusa a se alimentar ou se suicida, o que pode ocorrer de muitas maneiras.

A partir de então, Espinoza cita três exemplos de suicídios como causas externas. O primeiro exemplo soa bem estranho a ouvidos contemporâneos e, não seria exatamente um suicídio. Trata-se do caso em que alguém torce o braço de outra pessoa e faz com esta, que segura uma espada, vire-a contra seu próprio peito. O segundo exemplo, Espinoza toma Sêneca como modelo, é aquele que é obrigado a se matar; no caso de Sêneca ele foi coagido por Nero César a cortar os próprios pulsos. "Ou se é obrigado, como Sêneca, pelo mandato de um tirano, a abrir as próprias veias, por desejar evitar, por meio de um  mal menor, um mal maior" (E 4,20 escólio). 
O terceiro exemplo, sendo o mais complexo  dos três, exige um pouco mais de atenção do leitor. No escólio citado, Espinoza diz: "Ou, enfim, porque causas exteriores ocultas dispõe sua imaginação e afetam seu corpo de tal maneira que este assume uma segunda natureza, contrária à primeira, natureza cuja ideia não pode existir na mente". Ainda na proposição 10 da P 3, lemos:

Uma ideia que exclui a existência de nosso corpo não pode existir em nossa mente, mas lhe é contrária.(9)

Dessa forma causas externas podem ser de tal maneira absorvidas pela imaginação, que passamos a crer que somos uma coisa diferente do que somos, e mesmo contrária ao que de fato somos. Segundo Luís César Oliva:

Essa imagem de nós mesmos pode apresentar-nos, por exemplo, como perversos, fracos, como empecilhos para a realização de nosso verdadeiro eu, que cremos ser grandioso e brilhante. Como as duas imagens são conflitantes, podemos ser levados a destruir uma delas, a matar nosso falso eu, que ameaça o outro, e com isso chegamos à autodestruição. Para a imaginação, porém, o homem não mata a si mesmo, mas a um outro que o retinha e consumia; matá-lo, para a imaginação, é lutar a fim de preservar no ser o "eu verdadeiro", ou seja, mata-se sempre ao outro, nunca a si mesmo.(10)

Vemos, desse modo, que a morte vem de fora i. é, da imaginação que para Espinoza é um tipo de conhecimento pelo qual somos totalmente determinados mesmo crendo que estamos agindo espontaneamente. 

Sendo assim, não estamos falando de suicídio, mas de "homicídio" pois imaginariamente mata-se um outro que habita em nós. A única coisa que se possa falar sobre o suicídio é que é a prova cabal de que existe coisas na vida piores do que a morte. E essas "coisas" pedem estar somente em nosso imaginário.





NOTAS

*Personagem Ardenas Onírio do livro FÁBULAS DA FEBRE - Carlos Tavares de Melo

(1) Muságeta: na verdade, aquele que conduz as musas; amigo e protetor das musas, das ciências, das artes. Apelido de Apolo e Hércules. Esse termo é utilizado por Arthur Schopenhauer num ensaio organizado por Ernest Ziegler  SOBRE A MORTE, pensamentos e conclusões sobre as últimas coisas. São Paulo. Ed Martins Fontes 2013.

(2) Relançamento 23 de julho de 2015
Data de lançamento 27 de julho de 1959 (1h 36min)
Direção: 
Gêneros DramaFantasia
Nacionalidade Suécia
Breve sinopse: Após dez anos, um cavaleiro (Max Von Sydow) retorna das Cruzadas e encontra o país devastado pela peste negra. Sua fé em Deus é sensivelmente abalada e enquanto reflete sobre o significado da vida, a Morte (Bengt Ekerot) surge à sua frente querendo levá-lo, pois chegou sua hora. Objetivando ganhar tempo, convida-a para um jogo de xadrez que decidirá se ele parte com a Morte ou não. Tudo depende da sua vitória no jogo e a Morte concorda com o desafio, já que não perde nunca.
Vide ainda: http://erivan82.blogspot.com.br/2015/09/o-setimo-selo-o-jogo-da-morte.html
(3) Nesta citação utilizo a Bíblia Tradução Ecumência - TEB. Edições Loyola. Tradução vinda do francês La Bible - traduction aecuménique de la Bible

(4) Caso o leitor se interesse pelo tema da morte no período medieval recomendo como leitura o excelente livro do historiador Philippe Ariès O HOMEM DIANTE DA MORTE São Paulo. Ed UNESP 2013.
Ainda o excelente tratado de Johan Huizinga O OUTONO DA IDADE MÉDIA. São Paulo Ed CosacNaify. Sbretudo o capítulo 11 A imagem da morte pág 221.

(5) Vide PANNENBERG, Wolfhart - TEOLOGIA SISTEMÁTICA tomo 3 pág 730. São Paulo. Ed Paulus 2009.

(6) SCRUTON, Roger. Espinoza São Paulo. Ed Loyola 1996. pág 11

(7) SCIACCA, Michele Federico. Morte e imortalidade. São Paulo. Ed É Realizações 2011 pág 46.

(8) OLIVA, Luís César. Existência e a morte, A. São Paulo. Ed Martins Fontes 2012 pág 49

(9) Vide ainda E, P 3 prop. 5; corol. da prop. 9 da P. 2; prop 11 e 13 da P. 2. Nessa citações eu utilizei a Ética publicada pela editora Autêntica edição de 2009. trad Tomaz Tadeu.

(10) OLIVA, Luís César. Existência e a morte, A. São Paulo. Ed Martins Fontes 2012 pág 53.

Bibliografia básica
SCIACCA, Michele Federico. Morte e imortalidade. São Paulo. Ed É Realizações 2011 
OLIVA, Luís César. Existência e a morte, A. São Paulo. Ed Martins Fontes 2012


segunda-feira, 30 de maio de 2016

Retratos da alma: Novos rumos teológicos e existenciais

Retratos da alma: Novos rumos teológicos e existenciais: Novos rumos teológicos e existenciais O texto que segue foi escrito num período de transição intelectual no final de 2012. Foi um pe...

A cerimônia do adeus*



"O mundo corre sobre as cordas do coração sofredor, compondo a música da tristeza"
Tagore


"É o que afoga nosso coração em lágrimas, e faz com que a perda da vida daqueles que morrem se torne a morte daqueles que ficam vivos."
Santo Agostinho


Eu sou daqueles que se permite à tristeza. Respeito meu momento de luto. Me preocupa, é verdade, o fato de quase sempre eu ficar assim melancólico, depressivo, a pensar na morte - minha e dos outros -.  É que aqueles que conheço estão sendo tirados da minha vida muito cedo. E de forma trágica. Não cabe detalhes aqui, apenas tristeza cristalizada. O que eu faço com a melancolia? A transformo em força intelectual; penso, reflito sobre ela, escrevo sobre ela. Assim fazem os poetas. É uma forma de atenuar a saudade. Atenuar, não matar. 

A [essa] evocação mortífera da saudade - "morri de saudade" - responde a tentativa de acabar com ela - "vou matar a saudade" - , a primeira diz da falta, enquanto a segunda pretende suspender a sua presença. Mas ninguém morre de saudade (...) A saudade não mata, ela mantém vivo quem sofre dela, ela instala no sujeito em seu tempo de origem e destino, ela assegura tanto os limites quanto os sonhos e a imaginação. E também ninguém mata a saudade, mas toda tentativa de acabar com ela a renova, instaura-a de novo. Afinal, "morrer de saudade" é dizer desse doce sofrimento que ela inflige, e "matar a saudade" é tentar se livrar dela para a ela melhor se entregar.   [1]

Nem se mata a saudade nem se morre de saudade, mas que se sofre disso não tenha dúvidas. Não há conformidade na ausência.


Não me resigno quando depositam corações amorosos na terra dura.
É assim, assim será para sempre:
entram na escuridão os sábios e os encantadores.
Coroados de lírios e louros, lá se vão:
mas eu não me conformo.

Na treva da tumba lá se vão, com seu olhar sincero, o riso, o amor;
vão docemente os belos, os ternos, os bondosos;
vão-se tranquilamente os inteligentes, os engraçados, os bravos.

Eu sei.
Mas não aprovo.
E não me conformo.

Edna St. Vincent Millay.



Ontem faleceu (mais) um camarada vítima de tiros. Hoje recebi a notícia. Só lamento pela família. A morte é necessária não apenas um acontecimento possível; para o homem a morte tem gravidade absoluta; a morte pode ocorrer em qualquer momento sem aviso prévio. 

Neste blog há algumas singelas homenagens aos amigos e familiares que partiram. Cada vez que alguém muito próximo se vai é impossível não se perguntar: serei eu o próximo?

Qual será a forma da minha morte?
Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida.
Existem tantas... Um acidente de carro.
O coração que se recusa abater no próximo minuto,
A anestesia mal aplicada,
A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe,
Um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio...
Oh morte, tu que és tão forte,
Que matas o gato, o rato e o homem.
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem,
Nos meus filhos, na palavra rude
Que eu disse para alguém que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber aquela noite...
Raul Seixas - Canto para minha morte
Enquanto ela não vem me resta sofrer de saudade, me entregar - não por inteiro - à melancolia, ler alguns livros, escrever um poema talvez...
olhar pela janela.
Veja, está chovendo.
Um dia muito triste para um velório.
Maldita seja a cerimônia do adeus o momento da despedida final.

Descanse em paz amigo.

Rafael Gilio Santana















*Eu tomei este título do livro com o mesmo nome que a Simone de Beauvoir escreveu sobre a morte de Jean-Paul Sartre.

[1] JESUS, Samuel de. SAUDADE, da poesia medieval à fotografia contemporânea. Autêntica, 2015

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Não me ofereço a ti

"Você me tem fácil demais e não parece capaz de cuidar do que possui. (...) Não faça assim, não faça nada por mim, não vá pensando que eu sou seu"

Não estou em sua mãos, amada.
Amor não é possessivo. Nem pode ser. 
A vida precisa ser vivida com ou sem você. E será.

Eu sei que quando menos esperamos o amor acontece. E nós ficamos assim, desse jeito, sem jeito, qualquer jeito...
É um crime viver assim.

Abro mão
Não me ofereço a ti como teu brinquedo pessoal. Eu não sou.
Posso ser um presente sempre ausente em tua vida. E serei.
Posso deixá-la morar no meu coração. Habita.
Posso levá-la para sempre em meus pensamentos. E levo.
Posso dizer que te amo. E amo.

Mas não me ofereço a ti
Não me ofereço a ninguém.

Amor, não te disseram que o amor não é possessivo?

Erivan Silva

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Estes olhos que choram?





E estes olhos que choram?
E estes olhos que choram?
Se despedem de alguém?

O que há no coração que ficará guardado após a partida? Não saberei dizer.

Ficarei aqui neste canto olhando as prateleiras de vozes silenciosas até que a luz acabe.
No silêncio quero ouvir minha respiração e o pulsar de um coração cansado.

Quero estar lá quando a alma for arrancada do corpo.
Quero escolher com carinho que lembranças devo levar para o além.

Arregalei os olhos na esperança de que alguém os visse, e dissesse: olhem, isso não é tristeza; é uma despedida. É um olhar de adeus.

Ou será só tristeza mesmo?

E estes olhos que choram?


Erivan Silva




segunda-feira, 25 de abril de 2016

Tem gente que vai me perdendo...

"Tem gente que vai me perdendo.
Me deixando escapar.
Aí vou percebendo que nunca fiz tanta diferença, e que a importância que eu pensava ter, na verdade, nunca existiu".

Leva tempo ser esquecido completamente.


Não sei quem é o autor(a)

sábado, 19 de março de 2016

Por amor às causas perdidas

Por amor às causas perdidas
Por Erivan Silva



"Tudo o que realmente amamos foi um dia impossível." (1)
(Vladimir Safatle)

"Tudo bem, até pode ser
Que os dragões sejam moinhos de vento
Tudo bem, seja o que for
Seja por amor às causas perdidas."
(Engenheiros do Hawaii - Dom Quixote)

"Sonhar mas um sonho impossível"
(Maria Betânia - Sonho impossível)




No diálogo entre Espártaco e um pirata, este último pergunta ao gladiador se ele sabe que a revolta dos escravos está condenada, e que mais cedo ou mais tarde os rebeldes serão esmagados pelo exército romano; também pergunta o que ele faria se admitisse que a derrota dos escravos é inevitável. Espártaco continuaria a lutar até o fim? a resposta é afirmativa: a luta não é apenas uma tentativa pragmática de melhorar a condição dos escravos, é uma rebelião baseada em princípios, em nome da liberdade; assim, mesmo que sejam vencidos e mortos, a luta não será em vão, porque estarão afirmando seu compromisso incondicional com a liberdade - a tentativa, a própria ação, já é um sucesso, uma vez que ilustra a ideia imortal de liberdade. (2) 
 
Essa ideia de luta contra algo (aparentemente) impossível de se vencer soa bem religioso. Davi contra o gigante Golias serve de alegoria. Mesmo estando em total desvantagem, Davi corajosamente diz a Saul: "Ninguém deve ficar com o coração abatido por causa desse filisteu; teu servo irá e lutará com ele" (1Sm 17.32 NVI) Davi de fato o vence ao encaixar a pedra no local certo: sua testa. Desde os movimentos contestatórios de 2013 até movimentos similares nos dias de hoje o grito que mais se ouvia era de que o "gigantes acordou". O gigante de fato cresceu, ganhou força, tomou forma... Verdade seja dita: lhe falta sangue vermelho-vivo nas veias; lhe falta um coração no lado esquerdo do peito; lhe falta a luz da razão. Lhe sobra cólera e ira. O gigante está indignado mas não sabe exatamente com o quê. Ele causa medo e espanto pelo tamanho e força que dispõe; mas o gigante não tem uma alma. Tal como Frankenstein, ele é feito de vários retalhos e nenhuma parte que o compõe de fato lhe pertence. Para sermos mais realistas, nem seus pensamentos lhe pertence. Recebe ordens de uma nova direita: "somos milhares de Cunha". Consome linguagem midiática. Repete jargões sem nenhum critério. O gigante é um analfabeto político. "O que leva um indivíduo a reunir-se em um coletivo sem pensar com cuidado crítico nas causas e consequências dos seus atos configura aquilo que chamamos de analfabetismo político". (3)
Se esse gigante é tão confuso de onde lhe vem a energia que o mantêm de algum modo coeso? Vem, indubitavelmente, do poder da ideologia dominante.
 
"Deve-se enfatizar que o poder da ideologia dominante é enorme, não só pelo esmagador poder material e por um equivalente arsenal político-cultural à disposição das classes dominantes, mas também, porque esse poder ideológico só pode prevalecer graças à preponderância da mistificação, por meio da qual os receptores potenciais podem ser induzidos a endossar, 'consensualmente', valores e diretrizes práticas que são, na realidade,  totalmente adversos a seus interesses vitais". (4)
 
É possível vencer um gigante tão bem armado (espada, lança, escudo, couraça)? Ou estaremos sendo utópicos ingênuos? O que a esquerda tem feito sobre isso além de produzir infindáveis materiais que tem sido deixados às traças no cemitério das teorias? Não quero aqui ditar nenhuma fórmula, mas seria bom dar ouvidos ao sociólogo brasileiro Florestan Fernandes: "Para restabelecer a validade do marxismo, na economia ou na prática política revolucionária, seria preciso construir uma nova teoria e uma nova práxis, que mantivessem algumas premissas das ideias originais de Marx, mas partissem da situação existente"(5). Eu gosto dessa última parte "partissem da situação existente". Ora, qual é a nossa situação existente? A lista seria enorme, mas vejamos alguns apontamentos: 1. Crise econômico/politica; 2. Crise ética por parte tanto dos representantes legais quanto por parte de uma sociedade hipócrita que a legitima; 3. Um partidarismo sem par nos meios de comunicação em massa; 4. Um judiciário ineficiente se afirmando como uma nova política. Esses quatro cavaleiros (crises) do apocalipse anunciam que o futuro é tenebroso, incerto. É um salto no vazio. Yves Klein acertadamente afirma quando diz que "no coração do vazio, assim como no coração do homem, há fogos que queimam". Esse fogo, paixão pela liberdade, pode se configurar num movimento de resistência; numa indignação ética com caráter acusatório. Sobre essa indignação ética Jung Mo Sung reflete:
 
Por mais graves que sejam os problemas sociais, nem todas as pessoas sentem esta indignação ética. Há aquelas que não sentem esta indignação porque nem mais enxergam as pessoas vitimadas. Ou porque simplesmente as excluíram do seu campo de  sentido/visão, ou porque não mais consideram pessoas. Há Também aquelas que se sentem incomodadas com a visão do sofrimento das vítimas, mas o incômodo não chega à indignação ética e com o tempo esquecem.(6)
 
mais adiante Mo Sung arremata:
 
Para que uma pessoa possa se indignar frente a uma situação em que alguém está sendo tratado ou reduzido a uma condição sub-humana é preciso que aquela pessoa reconheça a humanidade desta. Muitas pessoas não se indignam frente a estas situações porque elas não conseguem "ver" e reconhecer a humanidade destas pessoas.
 
Nossa situação atual é que pessoas não enxergam pessoas como pessoas e sim como coisas. Isso faz parte do poder ideológico dominante, i. é, daquele poder que controla o gigante.
 
Sobre o primeiro cavaleiro (crise): 1. O governo não rompeu com a agenda neoliberal. Essa é a principal crítica que os partidos de esquerda radical fazem ao atual governo dito de esquerda; 2. A crise ética se dá exclusivamente por conta de doações de campanhas eleitoreiras. Aliado a isso temos acusações sérias de desvio de dinheiro público, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro... Podemos afirmar seguramente que boa parte dos políticos estão sob alguma acusação; 3. A mídia bombardeia informações no mínimo questionáveis dia após dia. Vomita ideologia dominante e  contamina até os mais sensatos; 4. O judiciário partidário engaveta processos que há muito deviam ter sido jugados, faz vista grossa quando o erro parte de seus intocáveis, em contra partida, comete as maiores arbitrariedades da história chegando a ponto de "sugerir" existência de crime onde até o presente momento nada se provou.
 
O desenrolar da história para nós outros não é promissor. Somos diminutos ante um adversário que parece crescer a cada dia. Nosso afeto oscila entre o medo e a esperança. Se algum momento nos parece favorável, temos medo de que algo dê errado; por outro lado se vivemos em um ambiente hostil carregamos conosco a esperança de melhora, e assim ciclicamente. Sobre essa modalidade de afetos, medo e esperança, Vladimir Safatle no seu livro O circuito dos afetos diz:
 
Como sabemos desde de Espinoza, metis e sper se complementam, há uma relação pendular entre os  dois: "não há esperança sem medo, nem medo sem esperança". Daí porque "viver sem esperança", disse uma vez Lacan, "é também viver sem medo".
 
 
Diante de uma realidade gigante e adversária que se nos apresenta qual afeto será evidente? Medo de sermos derrotados ou esperança de vitória? Tanto um quanto outro eu diria. Não nos esqueçamos da resposta de Espártaco: assim, mesmo que sejam vencidos e mortos, a luta não será em vão, porque estarão afirmando seu compromisso incondicional com a liberdade - a tentativa, a própria ação, já é um sucesso, uma vez que ilustra a ideia imortal de liberdade.

Para a nova classe média que despontou no horizonte social esses dois afetos também se tornam marcantes: por um lado, eles tem esperança de alcançarem cada vez mais status de se tornarem a classe dominante por excelência, por outro, o medo de voltarem a ser proletários, simples assalariados, os apavora. Causa medo.
 
O gigante (no contexto do livro do profeta Daniel) em sua composição tem ouro, bronze, prata, ferro. Mas também não nos esqueçamos da analogia sagrada: ele tem pés de barro e uma pedra pode pôr fim a sua onipotência.



SONHO IMPOSSÍVEL - MARIA BETÂNIA


Sonhar mais um sonho impossível
Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender

Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão

É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo, cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais

Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão

Vou saber que valeu
Delirar e morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão





Notas


(1) Vide o livro do filósofo/psicanalista Vladimir Safatle O circuito dos afetos - corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Ed CosacNaif, pág 44. Nesse mesmo contexto, Safatle diz: "Saltar no vazio talvez seja atualmente o único gesto realmente necessário."
(2) Vide Slavoj Zizek in Vivendo no fim dos tempos. ed Boitempo pág 16. Zizek se refere ao filme Spartacus de Stanley Kubrick.
(3) Marcia Tiburi - Como conversar com um fascista pág 53
(4) István Mészáros - Filosofia, ideologia e ciência social pág 8
(5) Florestan Fernandes - Nós e o marxismo (Expressão Popular) pág 7
(6) Jung Mo Sung - Sujeito e sociedades complexas, para repensar os horizontes utópicos (ed. Vozes) pág 48