sábado, 19 de março de 2016

Por amor às causas perdidas

Por amor às causas perdidas
Por Erivan Silva



"Tudo o que realmente amamos foi um dia impossível." (1)
(Vladimir Safatle)

"Tudo bem, até pode ser
Que os dragões sejam moinhos de vento
Tudo bem, seja o que for
Seja por amor às causas perdidas."
(Engenheiros do Hawaii - Dom Quixote)

"Sonhar mas um sonho impossível"
(Maria Betânia - Sonho impossível)




No diálogo entre Espártaco e um pirata, este último pergunta ao gladiador se ele sabe que a revolta dos escravos está condenada, e que mais cedo ou mais tarde os rebeldes serão esmagados pelo exército romano; também pergunta o que ele faria se admitisse que a derrota dos escravos é inevitável. Espártaco continuaria a lutar até o fim? a resposta é afirmativa: a luta não é apenas uma tentativa pragmática de melhorar a condição dos escravos, é uma rebelião baseada em princípios, em nome da liberdade; assim, mesmo que sejam vencidos e mortos, a luta não será em vão, porque estarão afirmando seu compromisso incondicional com a liberdade - a tentativa, a própria ação, já é um sucesso, uma vez que ilustra a ideia imortal de liberdade. (2) 
 
Essa ideia de luta contra algo (aparentemente) impossível de se vencer soa bem religioso. Davi contra o gigante Golias serve de alegoria. Mesmo estando em total desvantagem, Davi corajosamente diz a Saul: "Ninguém deve ficar com o coração abatido por causa desse filisteu; teu servo irá e lutará com ele" (1Sm 17.32 NVI) Davi de fato o vence ao encaixar a pedra no local certo: sua testa. Desde os movimentos contestatórios de 2013 até movimentos similares nos dias de hoje o grito que mais se ouvia era de que o "gigantes acordou". O gigante de fato cresceu, ganhou força, tomou forma... Verdade seja dita: lhe falta sangue vermelho-vivo nas veias; lhe falta um coração no lado esquerdo do peito; lhe falta a luz da razão. Lhe sobra cólera e ira. O gigante está indignado mas não sabe exatamente com o quê. Ele causa medo e espanto pelo tamanho e força que dispõe; mas o gigante não tem uma alma. Tal como Frankenstein, ele é feito de vários retalhos e nenhuma parte que o compõe de fato lhe pertence. Para sermos mais realistas, nem seus pensamentos lhe pertence. Recebe ordens de uma nova direita: "somos milhares de Cunha". Consome linguagem midiática. Repete jargões sem nenhum critério. O gigante é um analfabeto político. "O que leva um indivíduo a reunir-se em um coletivo sem pensar com cuidado crítico nas causas e consequências dos seus atos configura aquilo que chamamos de analfabetismo político". (3)
Se esse gigante é tão confuso de onde lhe vem a energia que o mantêm de algum modo coeso? Vem, indubitavelmente, do poder da ideologia dominante.
 
"Deve-se enfatizar que o poder da ideologia dominante é enorme, não só pelo esmagador poder material e por um equivalente arsenal político-cultural à disposição das classes dominantes, mas também, porque esse poder ideológico só pode prevalecer graças à preponderância da mistificação, por meio da qual os receptores potenciais podem ser induzidos a endossar, 'consensualmente', valores e diretrizes práticas que são, na realidade,  totalmente adversos a seus interesses vitais". (4)
 
É possível vencer um gigante tão bem armado (espada, lança, escudo, couraça)? Ou estaremos sendo utópicos ingênuos? O que a esquerda tem feito sobre isso além de produzir infindáveis materiais que tem sido deixados às traças no cemitério das teorias? Não quero aqui ditar nenhuma fórmula, mas seria bom dar ouvidos ao sociólogo brasileiro Florestan Fernandes: "Para restabelecer a validade do marxismo, na economia ou na prática política revolucionária, seria preciso construir uma nova teoria e uma nova práxis, que mantivessem algumas premissas das ideias originais de Marx, mas partissem da situação existente"(5). Eu gosto dessa última parte "partissem da situação existente". Ora, qual é a nossa situação existente? A lista seria enorme, mas vejamos alguns apontamentos: 1. Crise econômico/politica; 2. Crise ética por parte tanto dos representantes legais quanto por parte de uma sociedade hipócrita que a legitima; 3. Um partidarismo sem par nos meios de comunicação em massa; 4. Um judiciário ineficiente se afirmando como uma nova política. Esses quatro cavaleiros (crises) do apocalipse anunciam que o futuro é tenebroso, incerto. É um salto no vazio. Yves Klein acertadamente afirma quando diz que "no coração do vazio, assim como no coração do homem, há fogos que queimam". Esse fogo, paixão pela liberdade, pode se configurar num movimento de resistência; numa indignação ética com caráter acusatório. Sobre essa indignação ética Jung Mo Sung reflete:
 
Por mais graves que sejam os problemas sociais, nem todas as pessoas sentem esta indignação ética. Há aquelas que não sentem esta indignação porque nem mais enxergam as pessoas vitimadas. Ou porque simplesmente as excluíram do seu campo de  sentido/visão, ou porque não mais consideram pessoas. Há Também aquelas que se sentem incomodadas com a visão do sofrimento das vítimas, mas o incômodo não chega à indignação ética e com o tempo esquecem.(6)
 
mais adiante Mo Sung arremata:
 
Para que uma pessoa possa se indignar frente a uma situação em que alguém está sendo tratado ou reduzido a uma condição sub-humana é preciso que aquela pessoa reconheça a humanidade desta. Muitas pessoas não se indignam frente a estas situações porque elas não conseguem "ver" e reconhecer a humanidade destas pessoas.
 
Nossa situação atual é que pessoas não enxergam pessoas como pessoas e sim como coisas. Isso faz parte do poder ideológico dominante, i. é, daquele poder que controla o gigante.
 
Sobre o primeiro cavaleiro (crise): 1. O governo não rompeu com a agenda neoliberal. Essa é a principal crítica que os partidos de esquerda radical fazem ao atual governo dito de esquerda; 2. A crise ética se dá exclusivamente por conta de doações de campanhas eleitoreiras. Aliado a isso temos acusações sérias de desvio de dinheiro público, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro... Podemos afirmar seguramente que boa parte dos políticos estão sob alguma acusação; 3. A mídia bombardeia informações no mínimo questionáveis dia após dia. Vomita ideologia dominante e  contamina até os mais sensatos; 4. O judiciário partidário engaveta processos que há muito deviam ter sido jugados, faz vista grossa quando o erro parte de seus intocáveis, em contra partida, comete as maiores arbitrariedades da história chegando a ponto de "sugerir" existência de crime onde até o presente momento nada se provou.
 
O desenrolar da história para nós outros não é promissor. Somos diminutos ante um adversário que parece crescer a cada dia. Nosso afeto oscila entre o medo e a esperança. Se algum momento nos parece favorável, temos medo de que algo dê errado; por outro lado se vivemos em um ambiente hostil carregamos conosco a esperança de melhora, e assim ciclicamente. Sobre essa modalidade de afetos, medo e esperança, Vladimir Safatle no seu livro O circuito dos afetos diz:
 
Como sabemos desde de Espinoza, metis e sper se complementam, há uma relação pendular entre os  dois: "não há esperança sem medo, nem medo sem esperança". Daí porque "viver sem esperança", disse uma vez Lacan, "é também viver sem medo".
 
 
Diante de uma realidade gigante e adversária que se nos apresenta qual afeto será evidente? Medo de sermos derrotados ou esperança de vitória? Tanto um quanto outro eu diria. Não nos esqueçamos da resposta de Espártaco: assim, mesmo que sejam vencidos e mortos, a luta não será em vão, porque estarão afirmando seu compromisso incondicional com a liberdade - a tentativa, a própria ação, já é um sucesso, uma vez que ilustra a ideia imortal de liberdade.

Para a nova classe média que despontou no horizonte social esses dois afetos também se tornam marcantes: por um lado, eles tem esperança de alcançarem cada vez mais status de se tornarem a classe dominante por excelência, por outro, o medo de voltarem a ser proletários, simples assalariados, os apavora. Causa medo.
 
O gigante (no contexto do livro do profeta Daniel) em sua composição tem ouro, bronze, prata, ferro. Mas também não nos esqueçamos da analogia sagrada: ele tem pés de barro e uma pedra pode pôr fim a sua onipotência.



SONHO IMPOSSÍVEL - MARIA BETÂNIA


Sonhar mais um sonho impossível
Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender

Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão

É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo, cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais

Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão

Vou saber que valeu
Delirar e morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão





Notas


(1) Vide o livro do filósofo/psicanalista Vladimir Safatle O circuito dos afetos - corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Ed CosacNaif, pág 44. Nesse mesmo contexto, Safatle diz: "Saltar no vazio talvez seja atualmente o único gesto realmente necessário."
(2) Vide Slavoj Zizek in Vivendo no fim dos tempos. ed Boitempo pág 16. Zizek se refere ao filme Spartacus de Stanley Kubrick.
(3) Marcia Tiburi - Como conversar com um fascista pág 53
(4) István Mészáros - Filosofia, ideologia e ciência social pág 8
(5) Florestan Fernandes - Nós e o marxismo (Expressão Popular) pág 7
(6) Jung Mo Sung - Sujeito e sociedades complexas, para repensar os horizontes utópicos (ed. Vozes) pág 48

quinta-feira, 17 de março de 2016

Política do ódio

Política do ódio
 
Por Erivan Silva
 
 
Assim inicia-se a Ilíada, um dos textos fundantes do Ocidente: "Canta, ó Musa, a ira de Aquiles, filho de Peleu, que incontáveis males trouxe às hostes dos aqueus." Para aqueles que querem se aprofundar nessa temática sugiro a leitura de Ira e Tempo do Peter Sloterdijk. O autor não se atém apenas à Ilíada mas, também, a outro livro que de igual modo é fundamental às nossas raízes ocidentais, i. é, a Bíblia Sagrada. Segundo Sloterdijk "a ira de Aquiles também tem em comum com a ira de Javé, do antigo deus das tempestades e dos desertos..." Ora, o Novo Testamento não difere no quesito ira. Um deus irado aceita como sacrifício a morte de seu próprio filho para lhe aplacar a fúria. Entre as Eras* de Hobsbawn seria conveniente acrescentar uma nova era: A Era do ódio. Pelo menos é essa a impressão que tenho ao observar o quadro político-social no Brasil, sobretudo nesses últimos anos. Temos um patrimônio cognitivo pautado no ódio., na repulsa, na xenofobia. "O ódio nunca é cego, mas sim clarividente" nos dirá Heidegger. Sim, o ódio enxerga muito bem seu objeto; distingue cor, raça, opção sexual, posição econômica... O ódio sabe muito bem quem e quando atacar. Freud diz que essa agressividade contra o outro é uma satisfação do animal humano. Vejamos um trecho de O Mal-Estar da civilização:
 
"...os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa cota de agressividade.
 
Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utiliza-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilha-lo, causar-lhe sofrimento, tortura-lo e mata-lo."
 
Somos tentados a aceitar que o ódio é o oposto ao amor. Nada mais longe da verdade. O antônimo do amor é a indiferença não o ódio. A filósofa brasileira Marcia Tiburi diz que: "Não acabaremos com o ódio pregando o amor, mas agindo em nome de um diálogo que não apenas mostre que o ódio é impotente, mas que o torne impotente." Tornar o ódio impotente nesse mar de fúrias é o desafio dessa nova "era". O ódio como um ente abstrato toma conta do corpo. Cria para si uma nova linguagem sistêmica tanto objetiva quanto subjetiva. Eu arriscaria dizer que a televisão (leia-se mídia) é hoje a grande responsável pela disseminação do ódio. "A televisão tenta administrar os afetos das pessoas." (Tiburi) Ainda falando sobre a televisão, Marcia Tiburi prossegue: "As pessoas não fazem ideia dos malefícios que a televisão causa em suas vidas. Um malefício político, porque de tanto ver televisão são convencidas a ficar em casa trancadas e bem distantes das questões políticas, que decidem sobre suas próprias vidas. Veem bandidos na televisão e acham que, diante da televisão, estão a salvo deles. A televisão lhes oferece imagens de crimes e, ao mesmo tempo, oferece a prisão diante da tela dentro de casa." isso acontece em parte porque no Brasil se substitui televisão por livros. A televisão funciona como uma prótese dos sentimentos. Forma consumidores de ódio sem causa; esse é o chamado preconceito. É claro que ninguém deve pregar o fim dos meios de comunicação mas sim mudanças no seu funcionamento. A televisão é uma experiência intelectual e de conhecimento, só que empobrecida. Lembremo-nos de que em meados do século XIX, aparece a imprensa de massa, surge um novo ator: a opinião pública, tal como a chamamos hoje. A imprensa faz, constrói, cria opinião pública. Como diz Pierre Bourdieu, "a opinião pública não existe, ela é o reflexo dos meios de comunicação."
 
O filósofo esloveno Slavoj Zizek nos chama a atenção para uma expressão da língua persa, war nam nihadan, que quer dizer "matar uma pessoa, enterrar o corpo e plantar flores sobre a cova para escondê-la." Pensado no contexto histórico dos acontecidos da Primavera Árabe e do movimento Occupy Wall Street Zizek diz: "A tarefa primeira da ideologia hegemônica era neutralizar a verdadeira dimensão desses eventos: a reação predominante da mídia não foi exatamente um war nam nihadan? A mídia estava matando o potencial emancipatório radical desses eventos ou encobrindo sua ameaça à democracia, e então plantando flores sobre o cadáver enterrado".
 
Usando a mesma analogia no contexto brasileiro vejo que a mídia tem feito a mesma coisa, um war nam nihadan. Estão, através da televisão e demais redes sociais, matando o poder emancipatório do povo; estão matando a democracia, a justiça e no lugar dela plantam flores, isto é, pregam que sem o partido vigente no poder o Brasil será uma potência mundial emparelhada com os EUA; e o que é melhor: Sem corrupção. Hoje a mídia tem feito um grande desfavor para a sociedade. Promove a xenofobia, a inveja, o ódio, o consumo desenfreado, a coisificação do humano... Sabe o que é pior? É que muitos compram essas ideias, inflam-se de ódio e saem às ruas achando que são originais; acham que estão fazendo um grande favor ao Brasil: plantar flores sobre o cadáver da democracia.
 
 
* Era do capital,
Era das revoluções,
Era dos extremos.
 
 
BIBLIOGRAFIA
 
HOMERO - Ilíada, a - Rio de Janeiro Ed Ediouro, 1998.
TIBURI, Marcia - Como conversar com um fascista, reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro. Ed Record, 2015.
SLOTERDIJK, Peter - Ira e tempo, ensaio político-psicológico. São Paulo. Ed Estação Liberdade, 2012.
ZIZEK, Slavoj - Ano em que sonhamos perigosamente, o. São Paulo. Ed Boitempo, 2012.