quarta-feira, 1 de março de 2017

Acabou

You never close your eyes anymore when I kiss your lips...

Podia-se ouvir o som do Johnny Rivers de fora do carro tal o volume. you've lost that lovin' feeling, whoa, that lovin' feeling... gone, gone, gone woah... Desde criança João adorava as músicas do Rivers. Lembrava-se de sua infância. As imagens lhe viam a mente a revelia. Em suas lembranças via seu pai cerimoniosamente retirando o vinil da capa, passando uma flanela no disco preto. Isso! vem pro papai. Como num ritual litúrgico depositava com cautela o vinil no antigo Gradiente frente de alumínio - como costumava chamar o aparelho de som; um verdadeiro luxo para época. uma relíquia valiosíssima nos dia de hoje. Quem tem não vende. João guardava, tanto o velho disco quanto a antiga vitrola. Sim, João tinha uma excelente coleção de discos. Segundo ele, música boa foi produzida nos anos 1980. Tá! Também houve grandes sucessos nos anos 90, agora, com a virada do século só produziram lixo. Como pode alguém gostar de funk ou do "sertanojo universitário"? Um sorriso sempre se esboçava na face quando lembrava dos amigos da MPB: "sertanejo universitário se os caras não tem sequer o fundamental". "Sertanejo não, sertanojo". Dizia um outro enfiando o indicador na garganta como quem queria vomitar. Ambos estavam de acordo que música de qualidade há muito não se produzia. Uma pena que acabou a época dos grandes compositores e intérpretes. Enquanto reacendia a memória ao som do Johnny Rivers, deu seta para acessar a marginal Pinheiros. O corola bege deslizava suavemente na  pista até alcançar os 90 km/h. Logo estaria a 120 km/h. Seguia para a Dutra. Now there's no welcome look in your eyes when i reach for you... Não sabia inglês, nem precisava saber para sentir o ritmo tomando conta do seu corpo  lhe trazendo calmaria. Seus pensamentos voavam deslocados do tempo. Tinha regredido a trinta anos atrás. Um misto de prazer e saudade tomavam de assalto su'alma.

O computador de bordo anunciava: falta apenas 33 km para chegar em casa. Hora: 19h37min. Na velocidade que se encontrava, e caso não pegasse nenhum engarrafamento, em meia hora estaria guardando o possante na garagem.

Estaria...

Enquanto devaneava hipnotizado com a linha do horizonte, sentiu, súbito, que o carro perdia aceleração. Oxe! Que porra é essa? Quase que por instinto acionou a luz indicadora direita; foi para o acostamento. O veículo não respondia as pisadas agora mais agressivas. Definitivamente algo estava muito errado.

João estava confuso.

Pelos sintomas automotivos lhe parecia falta de combustível. Seus olhos percorreram o painel de controle. O marcador indicava  mais de meio tanque. Que porra é essa cara? Corola não quebra. Os 154 cavalos pareciam não ter a força de um jumento. Com o alerta acionado, aguardou alguns instantes no acostamento. Desligou o motor. Ligou novamente. Andou trinta metros e morreu. Nova tentativa: o carro não respondia. now it's gone, gone, gone... wooah. Nova tentativa; novo fracasso. 

Merda!!

Aos prantos Luciana estava certa de que era pura invenção do marido. Esse filho da puta estava era no motel com alguma coleguinha do serviço, e agora vem com essa de que o carro quebrou. Corola não quebra. Luciana não confiava no marido. Certos comportamentos dele sempre lhe foram suspeitos. Há algum tempo o casamento andava fraco das pernas, e com isso, discussões surgiam por qualquer motivo: mínimo que fosse. A separação definitiva estava à porta espreitando o casal como olhos sorrateiros. A qualquer momento o fio de prata seria rompido. Não demoraria muito. O casamento tinha falta de ar, pressão alta, arritmia... estava pálido. Respirava através de aparelhos. Na UTI aguardava um milagre. Seria só uma questão de tempo. O casal vinha ensaiando a separação nos últimos dois anos. Cerca de cinco vezes ela fora pra casa da mãe, agora estava tudo acabado. Porém, como uma ressurreição por choque cardiogênico, ambos retornavam com cara de cachorro; se lambiam reciprocamente e aninhavam-se como gatos num colo quente. O amor retornava com cara nova tendo o sexo de mãos dadas cheio de sacolas libidinais. Os óculos do desejo encaixavam-se perfeitamente no rosto do casal, cada uma via o corpo do outro com olhos vorazes de adolescentes pré-masturbação. Tinha início pela  enésima vez a festa do regresso, o retorno da paixão. 

Mas, a festa tão alegre tinha prazo de validade. O casamento não respirava sem ajuda de aparelhos e sem o cuidado humano da enfermaria e médicos de plantão. O amor líquido escorria pelas mãos de quem quisesse segurá-lo. Trabalho sísifico.

Em pouco tempo a casa dos amantes voltava a ser o velho ringue de sempre: acusações e ameaças de separação. Vias de fato, jamais. Machucavam-se com palavras, gestos e atitudes.
No leito nupcial, Luciana chorava tapando o rosto com o travesseiro. Inconsolável. Mesmo estando só de calcinha branca e exibindo um corpo desejável para os mais exigentes dos amantes, a cena em nada tocava João que, como Adão, aguardava em silêncio num canto do quarto com o falo às 6h30min. Não sabia o que fazer. 

João estava confuso.

O casal iria para o oitavo ano de casamento. João não contava dessa forma. Para ele o casamento estava no primeiro ano das vacas magras. A bonança ficou em algum passado no Éden. Em algum momento entre o quinto e o sétimo ano algo degringolou; algo foi tirado e o vazio foi uma constante.

"Certamente a gasolina havia acabado", afirmara o mecânico do seguro, "o problema é no marcador de combustível; marca que tem, mas não tem. Corola não quebra fácil não".

De fora do carro podia-se ouvir claramente o som do Johnny Riveres. A música já estava no fim You never close your eyes...

Erivan Silva