Biopolítica e Black Mirror: uma relação entre Foucault e o episódio Engenharia Reversa da série Black Mirror

Εριβαν Σιλβα* 

A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo”.
 _______ Foucault 

  Resumo 

A presente reflexão busca relacionar a lógica militar em Men against fire, quinto episódio da terceira temporada da série norte-americana Black Mirror, e relacionar com o conceito de biopolítica em Michel Foucault. Para tanto dividimos o texto em duas partes: a primeira analisa o episódio. Nesse primeiro momento analisamos as falas das personagens, onde, a nosso ver, fica claro uma relação intrínseca com o conceito de biopolítica ou biopoder, relação esta que veremos na segunda parte do texto.

Introdução

  1. Diálogos fundamentais de Men against fire para entender sua relação com a biopolítica A série norte-americana Black Mirror traz em sua terceira temporada o quinto episódio, Engenharia Reversa (men against fire). Neste episódio em questão, os militares são controlados por uma “máscara”; trata-se de um dispositivo implantado em suas cabeças, de modo que, tudo o que eles vêem (incluindo os outros sentidos: olfato, paladar, audição), são controlados pelo Estado. Vêm aquilo que o Estado quer que eles vejam. A tecnologia se funde com o orgânico: máquina e homem são um só. Assim, sua função principal é destruir “baratas” (cockroach), monstros inumanos vistos como uma praga perigosa para a continuação da espécie humana. Supostamente essas baratas teriam algum problema no DNA, por este motivo, seriam as responsáveis pela difusão de todo tipo de enfermidade. 

No desenrolar da trama somos coagidos a pensar que realmente trata-se de seres bestiais e que os militares estão, com toda sua força bélica e tecnológica, tentando nos dar proteção contra esses seres abomináveis. A existência humana depende da inexistência das baratas. O espectador fica esperando alguma criatura à semelhança do ser kafkiano de A metamorfose, um mistäfer. Sim, valeu a pena esperar pois é de fato o que vemos. Seres esquisitos com a face distorcida, dentes pontiagudos e sem capacidade para a linguagem. Tudo que conseguem reproduzir são sons horríveis sem a mínima articulação (“baratas não falam”). Com relativo prazer ficamos satisfeitos quando o protagonista, Striper, mata duas baratas: uma com tiros, outra, a facadas. O inumano, antes de ser assassinado, aponta para o rosto do soldado um tipo de lanterna. 

Após este episódio o protagonista começa a se sentir estranho. Algo não está bem. Essa missão, onde ocorreu o primeiro encontro do recruta com as baratas, teve início com o pelotão de Striper indo até uma aldeia que teria sido atacada pelas cockroaches. Curiosamente não havia feridos; as baratas só levaram alimentos. E o pouco que foi deixado deveria ser queimado imediatamente para não contaminar as pessoas com essa “merda no sangue”. Enquanto o recruta avalia o lugar, uma mulher se aproxima trazendo seu filho nos braços, pede para que ele [Striper] não deixe as baratas se aproximarem, ela está com medo, seu filho está com medo. Toma a mão do militar e parece fazer uma oração. Confia em Deus mas também confia na proteção militar. Portanto, não é contraditório rezar a um enquanto pede proteção a outro. Afinal todo bom cristão sabe que toda autoridade que há, foi constituída por Deus. É sob o medo que se recorre a Deus e àqueles que portam armas. São, na série, e na vida real, os dois baluartes de segurança de uma determinada classe. Um dos aldeões informa o lugar para onde possivelmente foram as baratas; um nome também é informado: Parn Heidekkar, um religioso “supostamente com problema mentais”, este teria escondido as baratas em sua casa. Lhes dá proteção. “Como alguém pode ser tão burro a ponto de proteger baratas?”. Nos parece que tais baratas, à semelhança dos humanos, também têm senso religioso; recorrem ao seu Deus possivelmente seja o mesmo Deus. Se Ele criou todos os seres da terra, é fato que as baratas estão entre suas criaturas, ou neste caso, ao seu representante. No local indicado a líder do pelotão trava um diálogo com Parn Heidekkar: 

"Você tem uma cruz na parede. Tem princípios [cristãos]. Acha que toda vida é sagrada. Eu entendo. Eu concordo. Se toda vida é sagrada, você se vê obrigado a proteger as baratas. Não é culpa delas que sejam assim. Não pediram para nascer assim. Eu entendo, nós [militares] entendemos. Mas a merda no sangue delas as deixam assim… A doença que elas carregam; elas não ligam para a santidade da vida, ou para a dor… Se a gente não impedir as baratas, daqui a dez, vinte anos, nossas crianças vão nascer assim [como baratas]". 

Enquanto os demais militares vasculham a casa, o diálogo (monólogo) continua: 

"Cada barata que salva hoje, você condena pessoas à dor e ao sofrimento no futuro. Não é possível que ainda as veja como humanas. Temos que acabar com elas para que a humanidade continue existindo. Temos que fazer sacrifícios". 

O mundo seria confortável e amigável se não fossem os monstros, e apenas os monstros, os responsáveis pelos atos monstruosos. Sendo as baratas vistas como monstros então sim, “sacrifícios são necessários”. Monstros e humanos não podem conviver no mesmo planeta. Afinal monstros não se parecem conosco, não tem linguagem, são incapazes de dialogar. 

"Contra os monstros estamos razoavelmente protegidos, podemos estar garantidos contra os feitos malévolos que são capazes de cometer e que ameaçam perpetrar. Temos psicólogos para identificar psicopatas e sociopatas; sociólogos para nos dizer onde é provável que eles se propaguem e se congreguem; juízes para condená-los à prisão e ao isolamento; e policiais e psiquiatras para assegurar que eles lá permaneçam (Bauman, 2013 [grifo meu]). 

Uma militar aponta o fuzil em direção a cabeça do interrogado e diz: “um defensor de baratas é um inimigo”. Os militares, ao lado das outras profissões elencadas por Bauman, devem assegurar que os monstros e quem quer que os protejam permaneçam num lugar à parte. Preferencialmente que sejam eliminados. A missão foi um sucesso, duas baratas mortas e seu protetor capturado. Após esse episódio, durante um treinamento militar tendo por alvos fixos caricaturas de baratas, Striper começa a se sentir estranho. Ao passar no médico não é diagnosticado com precisão. “Você acabou de voltar de um combate, é normal esse tipo de efeito colateral”, diz o médico. Assim, nosso protagonista é encaminhado à outra autoridade de nome Arquetto “aquele que é capaz de tramar contra algo ou alguém”. Esse primeiro encontro entre Striper e Arquetto é rápido. Este pergunta: “como foi a missão?”, aquele responde que achou que sentiria remorso, mas não sentiu nada. “Foi muito natural matar”. “Então você faria de novo?” “Sem dúvidas!”. Eis o soldado ideal, sem remorso e disposto a matar de novo e de novo. O bom soldado é aquele que cumpre ordens. A essa altura nem Striper nem Arquetto perceberam que havia um erro de funcionamento no dispositivo. Os sentidos do militar estavam diferentes. 

Na segunda missão, Striper toca a grama. Ela tem uma textura diferente; tem cheiro. Na ofensiva contra os inimigos, desta vez, Striper enxerga seu semelhante, tão humano quanto ele. “Você me vê com eu sou?” Pergunta uma “barata” acuada. “Claro que vejo”. Não vê uma barata?” Responde: “você não é barata. Baratas não falam”. Aqui aparece literalmente a divisa (inglês: striper) entre o mundo real e mundo construído e imposto como se realidade fosse. Os inimigos foram fabricados pelo governo. Tudo que Striper viveu até aquele momento não passava de uma grande mentira. Após um momento de tensão, Striper é preso e levado à presença de Arquetto. Segue o diálogo:

“É tudo mentira. As baratas são iguais a nós” 
“É claro que sim. É por isso que são perigosas” 

Prossegue Arquetto: 

"Seu futuro depende de erradicar o inimigo. Eu não sei o quanto de história você estudou na escola. Há muitos anos, no início do século XX, a maioria dos soldados nem disparava suas armas (...) os caras que matavam alguém, voltava para casa com problemas mentais. É muito mais fácil puxar o gatilho quando o inimigo é o bicho-papão. (...) O dispositivo [máscara] muda sua visão e os demais sentidos. Você não ouve os gritos, não sente o cheiro de sangue e de merda. Você tem ideia da quantidade de merda [que há] no DNA deles? Taxas mais altas de câncer, distrofia muscular, esclerose múltipla, baixo QI, tendências criminais, desvios sexuais… Está tudo lá. É isso que você quer para a próxima geração? O visor permite que você mate. Você está protegendo nossa linhagem. Você aceitou ter o visor implantado. Todo soldado concorda". 

Após mostrar toda a ação sem o visor, Striper pôde ver claramente o quão monstro ele fora. O quão monstro ele é. Não apenas ele, mas toda organização militar. A cena de assassinato se passa diante de seus olhos. Ele se vê esfaqueando um homem, tão humano quanto ele mesmo. E não adianta fechar os olhos: tudo se passa dentro da sua cabeça. 

*** 

De posse dos diálogos que considero fundamental do episódio Engenharia Reversa, veremos agora qual a relação deste episódio específico com o conceito de biopolítica em Michel Foucault. 

2. Sobre biopolítica e Men against fire 

O conceito de biopolítica tardou quase duas décadas até ser devidamente compreendido e apropriado por outros autores, como Giorgio Agamben, por exemplo. Foi apresentado em 1976 no livro História da sexualidade I e, desenvolvido no livro Em defesa da sociedade, curso ministrado no Collège de France, e publicado postumamente. Utilizo basicamente estas obras como apoio à reflexão deste texto, além, é claro, de o Nascimento da Biopolítica. Primeiramente cabe entender o que Foucault entendia por biopolítica ou biopoder. “Biopolítica: eu entendia por isso a maneira como se procurou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos à prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças…”. Para compreender o alcance do conceito é preciso fazer uma diferenciação entre poder soberano, poder disciplinar e biopoder propriamente dito. Veremos brevemente. 

O poder soberano predominou até o final do século XVII. O “poder soberano sobre a vida só se exerce a partir do momento em que o soberano pode matar”. Aquele que cometesse crime poderia ser executado, pura e simplesmente. O direito de vida e morte eram atributos fundamentais do soberano: é aquele soberano hobbesiano; a disciplina, ou poder disciplinar, surge no século XVIII como “técnicas de poder que eram essencialmente centradas no corpo, no corpo individual”. Sob esta condição a punição é menos propensa a pôr fim à vida do criminoso e mais propensa a controlar sua vida (o “homem-corpo”) mediante táticas tais como a prisão, o tratamento psiquiátrico, a liberdade condicional e a liberdade vigiada. Por fim, o biopoder é o poder sobre o bios (βιὸς) ou a vida, e as vidas podem ser administradas tanto na esfera individual quanto na de grupo: o “homem-espécie”. O poder agora se interessa por saber se as taxas de criminalidade estão subindo ou caindo, em quais grupos demográficos determinados crimes são predominantes e como as taxas de criminalidade podem ser controladas ou reguladas otimamente. 

O foco agora estará sobre a população, e não sobre o indivíduo. De que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopoder que está se instalando? Trata-se de um conjunto de processos como proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc. São esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade do século XVIII, juntamente com uma porção de problemas econômicos e políticos (...), constituíram, acho eu, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica. Em outras palavras, Foucault descreve o biopoder como um poder que se apropria da βιὸς humana. Sua tese era de que, a partir da virada para o século XIX, deu-se um importante deslocamento na forma de exercício do poder soberano, que passou a se afirmar não mais como um poder de matar a vida, mas sim como um poder que gerencie a vida. 

Foucault ainda argumenta que o biopoder é, (quase) necessariamente, racista “em linhas gerais, o racismo (...) assegura a função de morte na economia do biopoder, segundo o princípio de que a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela é membro de uma raça ou de uma população. 

Assim, os inimigos, inventados, já não podem ser apenas derrotados, pois constituem perigos internos à raça: “A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte do raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura” As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres tornam-se vitais. Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens (...) A situação atômica se encontra hoje no ponto de chegada desse processo: o poder de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir a outra sua permanência na vida. O Princípio: pode matar para poder viver, que sustentava a tática dos combates, tornou-se princípio de estratégia entre Estados (...) Se o genocídio é de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho direito de matar; mas é porque o poder se situa e é exercido no nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços de população [grifo meu]. Fazendo um comparativo relacional do conceito biopolítica com os diálogos e toda a lógica de Men against fire, vemos a biopolítica foucaultiana em ação; artificialmente construída, já que na série o homem não é o lobo do homem (homo homini lupus), não sem a ajuda de um dispositivo tecnológico que torna impossível enxergar o outro como humanos. A capacidade de julgar fica comprometida. Talvez os homens não tivessem coragem de atirar em outros homens, mas, em momento algum pensariam duas vezes em pisar numa barata e sair assoviando tranquilamente. 

Nos primeiros diálogos do episódio temos a seguinte fala: “cada barata que salva hoje, você condena pessoas à dor e ao sofrimento no futuro. Não é possível que ainda as veja como humanas. Temos que acabar com elas para que a humanidade continue existindo”. No dispositivo estatal é imprescindível que a inexistência, ou eliminação, de uns seja garantia para que outros continuem existindo. O gerenciamento da vida é deixar morrer para que se possa viver. Segundo Duarte “toda biopolítica é também, intrinsecamente, uma tanatopolítica”. Assim, “são mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros” É justamente esse “perigo” que encontramos na fala da personagem da série: “faz ideia da quantidade de merda [que há] no DNA deles? Taxas mais altas de câncer, distrofia muscular, esclerose múltipla, baixo QI, tendências criminais, desvios sexuais… Está tudo lá. É isso que você quer para a próxima geração? O visor permite que você mate. Você está protegendo nossa linhagem”. Arquetto, porta-voz do discurso citado, simboliza toda uma classe biológica “pura”, entende que a sobrevivência de uma classe inferior era um risco para a continuação da espécie humana (humana aqui entendido como sua categoria). O foco da biopolítica está na população e não mais no indivíduo como no poder soberano do século XVII. 

Em Men Against Fire a ideia não está em matar uma barata mas, na erradicação coletiva, biológica. Se a propaganda nazista representava os judeus como ratos que constituía uma ameaça para o bem-estar alemão, no seriado, uma parte da humanidade é representada como baratas, outra praga que à semelhança de ratos precisa ser combatida. O pano de fundo de Men against fire é da eugenia. Termo cunhado por Francis Galton, eugenia (literalmente bem-nascer) era descrita como “estudo de todas as agências sob o controle humano que possam melhorar ou prejudicar a qualidade racial das gerações futuras”. Foucault não fala da eugenia, porém, o evolucionismo de Darwin é incontornável. “No fundo, o evolucionismo (...) tornou-se, com toda a naturalidade, em alguns anos do século XIX, não simplesmente uma maneira de transcrever em termos biológicos o discurso político, não simplesmente uma maneira de ocultar um discurso político sob uma vestimenta científica, mas realmente uma maneira de pensar as relações da colonização, a necessidade das guerras, a criminalidade, os fenômenos da loucura e da doença mental…” O mito da eugenia aliado a uma distorção do evolucionismo darwinista pode de fato criar a falsa impressão de que há humanos superiores e humanos inferiores. Essa falsa crença e a posse de um tecnologia futurista (ou será conceitual?) são os ingredientes de Men against fire. Black Mirror pode ser apenas um bom entretenimento de fim de semana ou pode ser uma profecia que aponta, através da arte cinematográfica, que o futuro está logo ali na esquina. 


* Εριβαν Σιλβα (Erivan Silva) é fomrado em Psicologia, cursou história, filosofia e teologia. Atualmente é pós graduando em Psicologia clínica.

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