CRISTOFASCISMO



“Somos cristãos como os judeus”

Acredito que não seja necessário contextualizar a frase epígrafe deste texto. Confio  na capacidade cognitiva de quem lê para fazer a correlação necessária.

O termo cristofascismo não é um neologismo atual como muitos podem pensar. Para ser mais exato, remonta a 1970 tendo sido cunhado pela teóloga alemã Dorothee Sölle; basicamente é a combinação (paradoxal) entre cristianismo e fascismo. 

Se remontarmos à época de Lutero, o grande reformador, e lermos o que ele disse acerca dos judeus, talvez esclareça um pouco a relação absurda da frase “Somos cristãos como os judeus”. Martinho Lutero era um extremado anti-semita. Lutero chamava os judeus de “venenosos”, “vermes repugnantes” e “gentalha repugnante”. Em 1543, próximo à morte, escreveu três panfletos contra os judeus. Reproduzo um trecho a seguir:

Em primeiro lugar, incendeiem suas sinagogas ou escolas, enterrem e cubram com lama tudo o que não pegar fogo, de forma que nenhum homem jamais volte a ver uma pedra sequer ou as cinzas do que havia. Isso deve ser feito para a honra de nosso Senhor e da cristandade [...] Em segundo lugar, aconselho que suas casas sejam demolidas e destruídas [...] Em terceiro lugar, aconselho que todos seus livros de oração e ensinos talmúdicos lhes sejam tomados, pois neles idolatrias, mentiras, maldições e blasfêmias são ensinadas. Em quarto lugar, aconselho que seus rabinos sejam proibidos de ensinar daqui por diante, sob pena de perder a vida ou um dos membros do corpo. Em quinto lugar, aconselho que salvo-conduto para transitar pelas estradas seja abolido definitivamente para os judeus [...] Em sexto lugar, aconselho que a usura lhes seja proibida, e que todo o dinheiro e tesouros de prata e de ouro lhes sejam tomados e mantidos sob custódia [1].

Obviamente, esse anti-semitismo não ficou restrito ao século XVI. Quando, no século XX, a igreja cristã recebeu de braços abertos o Fuhrer, os pastores tomaram partido. O pastor Siegfried Leffer declarou:

Na absoluta escuridão  da história, Hitler se tornou, por assim dizer, a maravilhosa transparência de nossa época, a janela de nossa era pela qual a luz incide sobre a história do cristianismo [2].

Em agosto de 1933, foi a vez do pastor Julius Leuthersen escrever:

Deus veio à nós por intermédio de Hitler [...] por intermédio de sua honestidade, de sua fé e de seu idealismo, o Redentor nos encontrou [...] Hoje nós sabemos que o Salvador veio [...] temos apenas uma missão, sermos alemães e não cristãos [3].

A igreja cristã (parte dela) não apenas se calou ante o genocídio em curso perpetrado pelo nazismo, mas foi conivente com o próprio governo. Os louvores cantados nos templos não eram em adoração a Deus e sim para abafar os gritos daqueles que estavam sendo deportados nos trens. Leiamos o relato de um pastor a respeito:

Eu vivi na Alemanha durante o Holocausto. Eu me considero cristão. Ouvíamos histórias sobre o que estava acontecendo com os judeus, mas tentávamos nos manter à parte. Afinal, o que alguém poderia fazer para impedir aquilo?

Uma linha ferroviária passava atrás de nossa pequena igreja. Todos os sábados pela manhã podíamos ouvir ao longe o apito do trem e a seguir o barulho das rodas sobre os trilhos. Ficávamos transtornados quando ouvíamos os gritos que vinham dos trens quando estes passavam próximo à nossa igreja. Percebemos que naqueles vagões, judeus estavam sendo carregados como se fossem gado!

Semana após semana ouvimos o apito do trem. Tínhamos pavor de ouvir o som das rodas, porque sabíamos que ouviremos o som dos gritos dos judeus rumo aos campos de extermínio — gritos que nos atormentavam.

Sabíamos a hora em que o trem viria e quando ouvíamos o zumbido, começávamos a cantar hinos. No momento em que o trem passava atrás da igreja, já estávamos cantando com toda a força. Se ouvíssemos os gritos, cantávamos mais alto para não escutá-los.

Os anos se passaram e ninguém mais falou sobre isso. Porém, ainda ouço o apito daquele trem em meus sonhos. Deus me perdoe; perdoe a todos nós que nos dizíamos cristãos e não fizemos nada para interferir [4].

Falta-me tempo para explanar a vida de um cristão formidável que à época não ousou calar-se, mas denunciar o silêncio da igreja, me refiro a Dietrich Bonhoeffer.

É extremamente perigoso quando um Estado laico flerta com o poder religioso. Já vimos isso acontecer e o resultado também sabemos qual é. Citando de cabeça Eric Hobsbawm cabe aos historiadores lembrar aqueles que insistem em esquecer. 

Não, não somos cristãos como os judeus. 

Aliás, alguns são ateus, agnósticos, espíritas, do candomblé, da umbanda, mórmons… a espiritualidade é vasta. Quem tem interesse de uma única religião para tudo e para todos é o totalitarismo não a democracia. “Toda a teocracia um dia se tornará totalitária. Toda a tentativa de homogeneizar a cultura precisa se valer de obscurantismo. Todo o esforço de higienizar os costumes é moralista e hipócrita [5]”, escreve Ricardo Gondim.

Deus (caso exista) não está acima de ninguém, Ele está no meio de nós.

Referências

[1] Luther’s work, trad. Martin H. Bertram, Philadelphia: Muhlenberg, 1962, vol. 47, p. 268-72.

[2] PIERARD, Richard. Radical resistance, Christian History 10, nº 4, 1991, p. 30.

[3] CONWAY, J. S. The nazi persecution of the churches 1933-1945, New York: Basic Books, 1968, p. 48.

[4] RAUSCH, David. A legacy of hatred. Chicago: Moody, 1984, p. 168

[5] https://www.ricardogondim.com.br/.../deus-nos-livre-de.../ Consulta em 28 de fev 2024.

As referências foram retiradas do livro A cruz de Hitler - como a cruz de Cristo foi usada para promover a ideologia nazista, vide foto. É um livro de teor teológico, portanto deve ser lido com parcimônia e crítica. Não é um bom livro mas consta boas referências.

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