LARANJA MECÂNICA E A GENIALIDADE DE STANLEY KUBRICK

 LARANJA MECÂNICA E A GENIALIDADE DE STANLEY KUBRICK*

Quando o assunto é violência, particularmente a delinquência juvenil, o clássico Laranja Mecânica (A Clockwork Orange) lançado em 1971 e dirigido por Stanley Kubrick (1928-1999), nos vem à mente. 

Baseado no livro homônimo de Anthony Burgess a história mostra o protagonista, Alex, narrando sua própria vida, começando pelos atos bárbaros que cometia com sua gangue sem outro propósito que não a violência em si. Ele acaba preso e condenado à prisão por quatorze anos. É uma época de grandes avanços, no entanto, surge a promessa de um tratamento revolucionário, que superará em definitivo as “teorias penológicas”, como diz o ministro do Interior, defensor de que os presos sejam tratados “de uma forma puramente curativa”.

Em quinze dias, Alex está solto, após passar por sessões de condicionamento aversivo tão intenso que desenvolve náuseas insuportáveis diante de atos violentos. Aos protestos do capelão do presídio, que brada contra a perda do livre arbítrio do rapaz, o ministro responde que aquele era o “verdadeiro cristão”, incapaz de reagir a não ser oferecendo a outra face.

Tais críticas se avolumam após Alex tentar se matar, levando o governo a suspender o tratamento e o jovem a recuperar seu livre arbítrio, ficando aberta a posibilidade de ele voltar a escolher a violência.

No livro, isso de fato ocorre no início do último capítulo, mas o protagonista termina percebendo que precisa crescer, direcionando o fim da história para a sua recuperação. Como a versão norte-americana do livro, que Kubrick usou como roteiro, não trazia tal capítulo, ele só tomou conhecimento desse final tardiamente, optando por não usá-lo e deixando a obra sem uma conclusão explícita.

Conhecido por rechear suas obras com uma multiplicidade de sinais e autorreferências, Kubrick resistia a falar sobre o significado dos filmes que dirigia, preferindo deixá-los abertos às diversas interpretações.

Independente da direção que Alex seguirá — e todos os jovens infratores que ele representa —, o filme (e o livro) estão aí para não nos deixar esquecer de que, quando o crime é tratado como doença, Estado e medicina entram numa relação casuística fadada a estabelecer medidas inicialmente exageradas e, finalmente, fracassadas.

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Em entrevista concedida em 1972 acerca o filme Laranja Mecânica, Kubrick responde a seguinte questão levantada por Michel Ciment**:

MICHEL CIMENT: Com tantas e diferentes interpretações de Laranja Mecânica, como você vê seu próprio filme?

STANLEY KUBRICK: O filme fala da tentativa de limitar a escolha do homem entre o bem e o mal. Está ligado às considerações de Skinner em Além da liberdade e da dignidade [Beyond Freedom and Dignity], embora Skinner fale de condicionamento positivo e negativo. Este é o conteúdo-ideia da história, mas é a criação única de Burgess, o fantástico personagem de Alex, que representa o inconsciente, que faz com que ela funcione como drama, como obra de arte.

Uma interpretação muito interessante do filme foi feita por Aaron Stern, presidente da Motion Picture Association, que é também psiquiatra. Segundo ele, Alex, no início do filme, representa o homem em seu estado natural. Seu “tratamento” corresponderia, psicologicamente, ao processo da civilização, imposto ao indivíduo. Enfim, a liberação sentida pelo público no fim corresponde à sua própria ruptura com a civilização. Tudo isso funciona, é claro, em um nível inconsciente. Não é o que o filme diz literalmente, mas isso faz parte do que provoca a identificação do espectador com Alex.

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* Texto adaptado de “Laranja mecânica e a doença do crime” In: BARROS, Daniel Martins de. Além do consultório - como a psiquiatria nos ajuda a entender o mundo. Porto Alegre: Artmed, 2018.

** Entrevista integral disponível em CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick. São Paulo: Cosac Naify, 2013.




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