quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Amor: até que a morte (não) nos separe


Até que a morte (não) nos separe


Εριβαν Σιλβα*




"Pois o amor é tão forte quanto a morte..." 
(Ct 8.6 KJA)






Após o término da leitura de Carta a D. de André Gorz, tive a impressão de ter estado na sala do casal, André e Dorine, para uma conversa sobre amor. Mas não sobre qualquer amor, mas o amor deles. Um amor que sobreviveu 58 anos juntos, algo quase impossível de acontecer em nosso mundo líquido moderno. Após mais de meio século de vida a dois, Gorz escreve: "De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher". 

André Gorz não sabe explicar o por que amamos determinada pessoa "tive muitas dificuldades com o amor, pois é impossível explicar filosoficamente por que amamos determinada pessoa e queremos ser amados por ela, excluindo todas as outras". Essa impossibilidade de transferência do desejo pode ser vista na vida de Jacó, personagem bíblico. O desejo de Jacó por Raquel poderia ser substituído por Lia, mas não foi isso que aconteceu. Jacó queria Raquel. André queria Dorine. Esse amor possessivo-perene não pode ser explicado.

Carta a D. é uma carta que encarna um afeto que conhecemos como amor. Na leitura da missiva, fui obrigado a discordar do Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa) onde diz que "Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas". Não caro Pessoa, Carta a D. não é ridícula; é trágica. É sobre amor, um amor que se diz em vários sentidos.

Carta a D. é uma carta sobre o amor e o amar; sobre a morte e o morrer, por isso trágico. Para quem conhece a história do casal sabe que pouco tempo após a publicação da carta, André e Dorine cometem suicídio. Dorine estava com uma doença degenerativa. Não tinha mais muito tempo. Gorz, por sua vez, sofria vendo a esposa sofrer. "Procurei esse médico quando o seu estado de saúde se agravou dramaticamente. Você não conseguia mais se deitar, de tanto que a cabeça a fazia sofrer. Passava a noite em pé, na varanda, ou sentada numa poltrona. Eu queria acreditar que nós tínhamos tudo em comum, mas você estava sozinha na sua aflição". O amor pode ser experimentado a dois, já o sofrimento é hermético. Sem o objeto do seu amor, a vida do escritor perde o sentido, assim escreve: "Você é o essencial sem o qual todo o resto, importante apenas porque você existe, perderá o sentido e a importância". É a certeza de que a separação via mortis estava próxima, mas o temor de suportá-la não é tão certo assim.

"Você me deu toda sua vida e tudo de si; e eu gostaria de poder lhe dar tudo de mim durante o tempo que resta"(...) "Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos".

"Si ce n'est pas l'amour, Dieu que çu lui ressemble"
["Se isso não é amor, meu Deus, como se parece".] 
____ Juliette Gréco







*Εριβαν Σιλβα ou Erivan Silva fez filosofia. Atualmente cursa psicologia na Uninove-SP. É de sua preferência grafar seu nome em caracteres gregos; essa preferência é simbólica, aponta um retorno ao pensamento grego, gênese de todo pensamento ocidental.