sábado, 25 de junho de 2011

Liberdade, angústia e responsabilidade

Segue abaixo, um trecho da entrevista feita  ao professor de filosofia Franklin Leopoldo e Silva (professor na USP). Esta entrevista concedida a revista Filosofia ciência e vida, Ano 2007 - editora Escala - foi mediada pela jornalista Patrícia Pereira. Tomei a liberdade de fazer observações e incrementações como complementos auxiliares ao leitor. Boa leitura.

¨A liberdade não é alguma coisa
que está aí para ser usufruída, como
um bem, como uma coisa feliz e alegre.
Liberdade é uma coisa pesada que envolve
essa responsabilidade¨
F.L e Silva

Filosofia - Para o existencialismo, o homem define cada momento um pouquinho de sua própria existência e tem a liberdade de mudar a própria vida. Mas, ao contrário do que se pode pensar, essa liberdade traz angústia. Qual a relação entre liberdade e angústia?

Leopoldo e Silva - Em primeiro lugar, a liberdade, por ela ser total, o indivíduo constroi sua própria existência, ela implica também uma enorme carga de responsabilidade. Quando se tem uma liberdade total relacionada com o indivíduo, tem-se também toda a responsabilidade consequente desta liberdade só relacionada a ele. A principal diferença é que você não tem com quem ou com o que dividir a responsabilidade pela maneira como você organiza sua vida. Isso traz um certo peso que o Sartre fez questão de enfatizar. A liberdade não é alguma coisa que está aí para ser usufruída, como um bem, como uma coisa feliz e alegre. Liberdade é uma coisa pesada que envolve essa responsabilidade. E as escolhas que se tem de fazer a cada momento também não estão determinadas por nada que anteceda essa própria escolha ou ao próprio indivíduo por exemplo, não se pode ligar a uma tabela de valores ou a uma certa tradição ou crenças, é preciso escolher livremente o que se vai fazer a cada momento. E o valor que dirige essa escolha também é inventado. Liberdade é uma constante invenção, não só da sua conduta como também do critério. Isso é uma coisa muito nova. Em geral, a gente presume que quando se tem normas de conduta, uma moral, valores a seguir, certas regras sociais, o indivíduo simplesmente segue. No caso do Sartre, tudo isso está sujeito à escolha. Não há critérios prévios para dizer o que fazer. É preciso decidir sozinho o que fazer e a partir de que critério.

Filosofia - Mas há algum meio de lidar com essa liberdade e com aresponsabilidade sem ter o sentimento de angústia?

Leopoldo e Silva - Não. O sentimento de angústia deriva exatamente do fato de se estar desamparado. Sempre gostaríamos de ter com quem dividir a responsabilidade. Divide-se a responsabilidade com a crença religiosa, com os valores familiares e sociais, com aquilo que se cristalizou na tradição. Isso dá uma relativa segurança. E no caso de ter que decidir tudo sozinho, a angústia de não ter com o que contar a não ser consigo mesmo é muito grande. Esse é o modo de vida autêntico, o que não indica que todos vivam assim. O que nós procuramos propriamente é de certa maneira escapar disso. Encontrar algo pronto que nos oriente valores, regras de conduta, encontrar uma certa identidade a partir da qual você ache que é aquilo e vai continuar sendo sempre, então não tem de decidir a cada momento o que se é porque você já é. Essas crenças são como muletas que nos ajudam a ir levando a vida. Mas aí se tem um modo de vida que não é autêntico do ponto de vista da existência. Ele é muitas vezes baseado no que Sartre chama de má-fé. Má-fé significa construir uma imagem de você e do mundo e se apegar aquilo. Como se aquilo fosse você. É uma tentativa de mentir pra você mesmo. A partir daí se constrói alguma coisa com a qual você se identifica. Isso dá uma certa segurança, uma certa estabilidade nesse processo de existência. Todo mundo de uma maneira ou de outra tenta realizar isso para poder ter uma vida mais segura, mais estável, mais previsível e com menos conflito porque a cada momento de escolha inevitavelmente se tem conflitos.

Filosofia - Se cada um tem um projeto e é responsável por seu próprio destino, Sartre defende a atitude individualista?

Leopoldo e Silva - Não. O indivíduo não está sozinho. Ele vive obrigatoriamente em sociedade, ele vive com outros. Essa convivência com os outros, na verdade, é uma coisa muito dificil. Existe muita dificuldade em ver o outro como sendo o outro 'eu'. Eu sou sempre eu. O outro não é um 'eu'. Nós tendemos a instrumentalizar as pessoas para conseguir nossos objetivos. Então a convivência parece difícil, sempre você está mais ou menos vendo o outro objeto e ele lhe vendo também como outro objeto, o que torna a convivência conflituosa. Mas, de qualquer forma, ainda que seja assim, a vida é sempre pautada em uma situação em que se tem os outros em volta. Essa liberdade individual é sempre exercida dentro de uma situação em que os outros estão presentes e também tentando exercer a liberdade deles. Daí se tem esse choque de consciência, de liberdade que faz parte da nossa existência e de nossa existência histórica, sicial, política.

Filosofia - E como o filósofo francês tenta resolover essa questão?

Leopoldo e Silva - Sartre tenta solucionar isso na questão do compromisso histórico, do engajamento histórico. Você, apesar de ser sempre um indivíduo, de nunca conseguir ter uma idéia clara do outro, pode se associar a ele em um projeto histórico. As resistências históricas, sem superar essa solidão, tendem a nos fazer ter uma certa comunicação com o outro em vista destes projetos. Os projetos não são individuais, englobam os outros, tem a ver com cidade, com política, com o coletivo, daí as pessoas tendem a agir juntas. Isso não significa que eu vou conhecer inteiramente o outro, mas eu vou agir junto com ele porque os nossos projetos convergem do ponto de vista social, político e histórico.

Filosofia - Mas a sociedade contemporânea é conhecida por ser muito individualista. Por que chegamos a este comportamento?

Leopoldo e Silva - É porque a sociedade moderna foi fundada sobre o indivíduo. O indivíduo é o centro de onde tudo se irradia. Tem-se uma sociedade pautada na idéia de que o indivíduo tem os seus direitos naturais. Ele se associa com os outros para defender esses direitos. Por exemplo, a vida e a propriedade são direitos naturais. Não é a sociedade que dá isso. Um se associa a outro para se organizar melhor e defender esses direitos. O indivíduo sempre tem a primazia. Isso faz com que a sociedade, do ponto de vista de uma comunidade de pessoas, seja sempre algo secundário e relegado. Ainda que se tenha uma sociedade bem organizada, o individualismo prevalece.

Sartre: Liberdade radical

Condenado a ser livre,
o homem é o único responsável por sí e por seus atos.
Por isso mesmo tem medo e angústia; sente-se sozinho,
abandonado no mundo, sem saber o que fazer no instante seguinte.

Liberdade e ação

A teoria sartreana do ser para-sí conduz a uma teoria da liberdade. Isso porque o ser para-sí define-se como ação e a primeira condição da ação é a liberdade. O que está na base da existência humana é a livre escolha que cada homem faz de sí mesmo e da sua maneira de ser.

Desse princípio decorre a afirmação de Sartre de que o homem é inteiramente responsável por aquilo que e´; não tem sentido querer-se atribuir as falhas individuais a fatores externos como a hereditariedade, a ação de meio, a influência de outras pessoas.

A cada momento o ser humano precisa exercer sua liberdade absoluta, refazendo seu eu. É esse o processo de existir; uma relação indeterminada com esse refazer. Isso provoca angústia. Provoca também o medo de realizar as próprias possibilidades; há medo e angústia porque o homem não sabe o que será no momento seguinte.

A autonomia da liberdade, como determinação fundamental e radical do ser para-sí, faz do existencialismo uma filosofia que prescinde de idéia de Deus. Para Sartre não há nenhum fundamento sobrenatural para os valores: é o homem quem os cria. O valor da vida é o sentido que cada homem escolhe para sí mesmo. Em sítese, o existencialismo sartreano é uma forma radical de humanismo, suprimindo a necessidade da metafísica e colocando o próprio homem como criador de todos os valores.

A má-fé

Quando o ser humano se fixa numa personagem de sí mesmo, rompendo com o fazer-se contínuo, ele deixa de usar sua liberdade. Cristaliza-se. Essa cristalização, esse parar de fazer-se livremente, tem um nome de má-fé.
O ideal perseguido pela má-fé é tornar-se coisa, ser em-sí. A má-fé leva à reificação: o ser humano passa a considerar-se algo sólido ( como um objeto ), definitivo,contrariando a possibilidade do para sí - que é fazer-se - e desagregando a existência, pois desestruturou a liberdade. A conduta de má-fé é a fuga da realidade.

Liberdade e responsabilidade

(...) o homem, estando condenado a ser livre,
carrega nos ombros o peso do mundo inteiro:
é responsável pelo mundo e por sí mesmo
enquanto maneira de ser. Tomamos a palavra
¨responsabilidade¨ em seu sentido corriqueiro
de ¨consciência (de) ser o autor incontestável
de um acontecimento ou de um objeto¨. (...)
Portanto. é insensato pensar em queixar-se,
pois nada alheio determinou aquilo que
sentimos, vivemos ou somos. Por outro lado,
tal responsabilidade absoluta não é resignação:
é simples reividicação lógica das consequências
da nossa liberdade. O que acontece comigo,
acontece por mim, e eu não poderia me deixar
afetar por isso, nem em revoltar, nem me
resignar. (...)
Sou abandonado no mundo (...) no sentido de 
que me deparo subtamente sozinho e sem ajuda,
comprometido em um mundo pelo qual sou
inteiramente responsável, sem poder, por mais
que tente, livrar-me um instante sequer desta
responsabilidade, pois sou responsável até mesmo
pelo meu próprio desejo de livrar-me das
responsabilidades (...)
 Jean-paul Sartre, O Ser e o nada.


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