domingo, 2 de dezembro de 2018

Erva-doce

Erva-doce



Εριβαν Σιλβα*



A água na chaleira em ponto de ebulição fazia a válvula apitar. A xícara posta na mesa seguida por bolachas de maizena e pão.
"Quer chá José?"
"Chá de quê?
"Erva-doce"
"Quero!"
"Vai querer chá José Filho?"
"Não! Chá é coisa para doentes". Disse enquanto assistia a mais um clip de Madonna.
José Filho era o filho do meio da família Silva. Destoava dos demais irmãos, visto que era loiro e tinha os olhos azuis. A mãe morena e o pai negro, não fossem os esteriótipos físicos ninguém dizia que era do mesmo sangue.
A família era evangélica. Seo José, o pai, era pastor de uma igreja que ele mesmo fundara. O próprio Deus tinha lhe dado um ministério. Dona Maria, a mãe, seguia o esposo onde quer que fosse. Vinha do catolicismo e convertera-se recentemente por influência do esposo que "já era batizado no Espírito Santo e falava em línguas". Os demais filhos não vem ao caso agora. José, o filho é quem nos interessa. Alto, atlético não andava: desfilava. Qualquer que o visse pela primeira vez dizia que "dava para modelo". Isso deixava o garoto bem orgulhoso de si. Quando nasceu era o bebê mais bonito de Quipapá. Gostava de mostrar suas fotos de infante esperando os elogios que sempre vinham.
José acreditava em Deus mas não ia à igreja por mais que seus pais insistissem. O rapaz também tinha traquejo para a dança. Imitava com perfeição Madonna, Beyoncé e Lady Gaga. Com seus vinte e poucos anos tinha os hormônios em ebulição a todo instante. Não trabalhava, assim, ficava o dia inteiro dançando e infernizando a vida do gato, animal de estimação da família, que não conseguia dormir em paz pois José o punha no colo forçando-o a assistir os clips musicais. Se o gato falasse mandava-o se foder.
Não era só a dança e o gato que tinha a atenção do galego. Sua vizinha tirava seu sono. Eva era daquelas negras da bunda grande que chamava a atenção por onde passava. Já tinha cinco filhos, mesmo assim, mantinha um corpo de bronze desejável por muitos homens inclusive nosso protagonista. José estava cansado da auto-satisfação e tinha planos de pegar "aquela nega".
Certa noite, planejou que iria à casa da Eva. Mas não como visitante, pularia o muro com a desculpa de buscar o gato. Há dias que percebera que Eva lhe olhava de um modo estranho, com certeza ela também queria. Se dava para os outros porque não a ele? Se Reginaldo havia conseguido ele também poderia. O plano seria posto em prática essa noite. Pularia o muro indo para o quintal da vizinha, por certo ela se assustaria com o barulho, ele chamaria o gato; ela ouviria sua voz, abriria a porta e diria "veja se o gato entrou na minha casa, José". O plano era perfeito.
22 horas. Os pais já foram dormir. Só esperar mais um pouco. O gato ronronava no sofá cansado das músicas de sempre. José assistia pela décima vez o clip da Lady Gaga. 01 hora da manhã. O silêncio reinava absoluto madrugada a dentro. "Mãos-a-obra". Saiu. Improvisou uma escada com um cavalete e subiu no muro de mais de dois metros. Estava muito escuro, não dava pra ver o chão do outro lado, para onde pularia. "Puta merda, e agora? Pulo ou não pulo?" Pensou consigo ponderando os riscos. "Que se foda! Hoje eu cato a Eva". Pulou. Não contava porém com o terreno irregular e cheio de entulhos. Caiu com toda força no chão escuro. Sentiu braços e pernas baterem em vergalhões, bateu a cabeça e o estômago foi recebido com um forte golpe numa viga de madeira; perdeu o fôlego. Quando este retornou aos pulmões, gritou "Aaaaiiiiii! Me aajuuudeeemm!".
Todos acordaram com o grito de socorro. O bichano foi o primeiro a fugir do sofá em direção ao quarto como quem foge de um pitbull. José pai levantou-se assustado "Meu Deus do céu, o que foi isso?"
"Parece a voz do José Filho. Cadê ele?" Disse Maria.
A televisão estava ligada passando Beyoncé e suas dançarinas. Súbito, José apareceu todo ensanguentado e mancando. Antes que alguém perguntasse alguma coisa ele já foi se explicando com voz chorosa "Eu fui buscar o gato e cai do muro".


***

Noite do outro dia. 
Dona Maria fervia a água para o chá noturno.  Seo José lia a Bíblia com dificuldades que tinha com a gramática. José Filho, cheio de ataduras e curativos alisava o gato enquanto via Madonna.
"Quer chá José?" Deixando a Bíblia de lado, baixando os óculos ele pergunta "chá de quê?"
"Erva-doce"
"Quero!"
Virando-se para o filho quebrado "Quer chá, filho? É de erva-doce"
"Quero sim, mãe"
Enquanto tomava o chá, José, bolava outro plano na mente. Esse sim daria certo. Primeiro precisava se recuperar.






*Εριβαν Σιλβα ou Erivan Silva fez filosofia. Atualmente cursa psicologia na Uninove-SP. É de sua preferência grafar seu nome em caracteres gregos; essa preferência é simbólica, aponta um retorno ao pensamento grego, gênese de todo pensamento ocidental.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Ela veio (Milagredoce)


Por Εριβαν Σιλβα

Ela veio noutro corpo
Retornou a mim.
Sem que eu esperasse.
Bateu a porta e foi entrando. Pensei que a porta estava trancada: Não pra ela.
Malas cheias de dores, temores, amores, memória e história foram largadas na entrada do esquerdo batimento.


Achei que já tinha superado... Que tudo fosse passado.
Engano defasado. Orgulho esmigalhado.

Ela voltou.
Com o mesmo sorriso, com os mesmos olhos e o como me olha.
Com o mesmo jeito, trejeito de andar de expressar...
Veio com a mesma alma.
Exalando aquele perfume.
Com a calma que sempre teve.
Malas cheias de dores, temores, amores...

Ela veio
Com a mesma voz
Ela veio com o mesmo nome; não sobrenome, este é meu: Silva.
Meu Silva, minha Silva.
Silvestre.
Planta Silvestre regada com sal. Alimentada com lençóis de fogo subterrâneo.
Rizoma sofrível que toma conta do horizonte do solo em pó.
Do pó tornará, do pó veio do pó. Renascida ferida.
Ela veio.

Ela veio com o mesmo nome.
A mesma Camisa veste de quando foi.
Lou de Nietzsche Salomé do Batista, me fez perder a cabeça; me fez louco.

Mulher de vidro
Milagredoce.
Lado Amargo; lado Amor.

Veio no dia das crianças, de mim fez de novo menino sem presente: só passado.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Cristianismo e marxismo ideologias utópicas







Por Εριβαν Σιλβα

Numa primeira leitura pode parecer que cristianismo e marxismo não tenha nenhuma relação entre si, sobretudo porque Karl Marx (1818-1883) foi adotado como um dos baluartes contra a religião 1. Porém essa contradição é apenas aparente. Lembro ao leitor que há duas correntes que beberam do pensamento marxista: a Teologia da Libertação (corrente católica), e a Missão Integral (corrente protestante). Não tenho interesse de discorrer sobre essas duas vertentes, mas refletir sobre uma proximidade entre Cristo e Marx naquilo que entendo que antes de Marx/Engels já havia um "pré-comunismo" nos ensinamentos de Cristo e nos primeiros cristãos.

Pré-comunismo

O historiador britânico Eric Hobsbawn (1917-2012) escreve "[...] também os revolucionários gostam de ter antepassados"2. A genealogia do comunismo não é encontrada em Marx/Engels, mas antes deles. No livro História do Marxismo Vol. I encontramos o seguinte texto:

[...] a filosofia trazia do passado uma forte herança de comunitarismo, ou mesmo, em alguns casos, a ideia de que uma sociedade sem propriedade privada seria sob certos aspectos mais "natural" do que a caracterizada pela propriedade privada, ou, de qualquer modo, ser-lhe-ia historicamente anterior. Esse aspecto era particularmente enraizado na ideologia cristã: nada mais fácil do que ver no Cristo do Sermão da Montanha o "primeiro socialista" ou comunista; embora os primeiros pensadores socialistas, em sua maioria, não fossem cristãos, posteriormente muitos membros de movimentos socialistas consideraram útil essa reflexão 3.

De fato as bem-aventuranças do Sermão da Montanha começa com as seguintes palavras "felizes os pobres de coração: deles é o reino dos céus" (grifo meu). Aqui, a palavra pobre (gr πτωχός/ ptôchos) tem sentido amplo (vide Mt 11.5; 26.9,11; Lc 21.3; 2 Co 8.9).

Ernest Renan (1823-1892) em seu livro A Vida de Jesus também faz alusão a um cristianismo comunista. Em sua palavras:

Essas máximas, ideias para um país em que a vida se nutre de ar e luz, esse comunismo inofensivo  de uma turma de filhos de Deus, vivendo aconchegados no seio de seu Pai, podiam convir a uma seita ingênua, persuadida constantemente de que a utopia se realizaria (grifo meu) 4.

Sobre Atos: o comunismo dos primeiros seguidores de Jesus.

O historiador brasileiro Jefferson Ramalho escreveu um livro intitulado Jesus - o maior socialista que já existiu. Numa escrita corajosa e ousada, J. Ramalho não teme o anacronismo e aceita correr o risco de ser mal interpretado. Para quem entendeu a proposta do livro verá que está diante de uma obra ímpar cuja originalidade é fazer uma "releitura de situações específicas vividas por Jesus e por seus primeiros seguidores 5" (grifo meu).
Para que não haja mal entendimentos o historiador brasileiro define os dois conceitos-chave: socialismo e comunismo. "Ao pensar em Socialismo, referimo-nos à etapa intermediária do Comunismo. Contrariando-se à existência de diferentes classes sociais, exatamente por se opor às desigualdades e injustiças, o Socialismo defende que haja oportunidades plenamente iguais a todos" (...) Comunismo é uma ideologia política, econômica e social que tem por elementar objetivo a consolidação de uma sociedade sem desigualdades" 6.
Do livro Jesus, o maior... nos interessa o capítulo 12: O comunismo dos seus primeiros seguidores. Porém, antes de refletir sobre o capítulo em questão, faço aqui uma citação de Atos 4, mais especificamente os versículos 32-35:

E da multidão dos que creram, um só era o sentimento e a maneira de pensar. Ninguém considerava exclusivamente seu os bens que possuía, mas todos compartilhavam tudo entre si.
[...]
Não havia uma só pessoa necessitada entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o depositavam aos pés dos apóstolos, que por sua vez, o repartiam conforme a necessidade de cada um. (KJV)

Na versão Tradução Ecumênica (TEB), encontramos no versículo 32: 

A multidão daqueles que tinham abraçado a fé tinham um só coração e uma só alma.

Na Tradução Linguagem de Hoje (NTLH) lemos a primeira parte do mesmo versículo:

Todos os que creram pensavam e sentiam do mesmo modo.

Transcrevi três versões diferentes com o intuito de mostrar ao leitor que "o mesmo sentimento" e a "mesma maneira de pensar" era comum entre os fiéis; tanto que no grego koiné a tradução é como segue: a) mesmo sentimento, gr καρδία/kardia traduzido como coração; b) mesma maneira de pensar, gr ψυχή/psiché traduzido como alma.

Refletindo sobre o versículo de Atos dos Apóstolos J. Ramalho escreve:

Na comunidade descrita na narrativa dos Atos dos Apóstolos, porém, parece que havia outra dinâmica. Ali, seguindo o exemplo deixado por Jesus, os primeiros adeptos de sua mensagem, por viverem em plena união, compartilhavam tudo o que possuíam. Havia um desapego radical por parte daqueles que possuíam mais bens, pois chegavam a vender todas as suas propriedades e posses materiais para distribuir o dinheiro entre todas as pessoas, conforme as necessidades de algumas. Assim, ninguém passava por dificuldades, uma vez que havia solidariedade entre eles 7.

Seguindo a mesma linha do historiador, encontramos o teólogo e economista Jung Mo Sung fazendo uma reflexão análoga utilizando como objeto o mesmo texto em tela: At 4.32-35, contudo, Mo Sung parte de uma problemática implícita, sendo assim, seu teor é mais pessimista. Em um primeiro momento escreve:

Como a tradição da "esquerda" moderna sempre enfatizou a noção de igualdade social, é importante frisar que, no texto do livro dos Atos dos Apóstolos, o objetivo não é a igualdade, mas sim que não houvesse necessitados entre eles. Porque, para eles, mais importante do que a igualdade era que todos tivessem uma vida digna. Também porque pode existir uma situação de igualdade social marcada pela pobreza onde todos passam necessidades de uma forma igual 8 (grifo meu).

Em seguida três problemas são postos à discussão: 1) um de esfera pessoal, 2) outro na esfera administrativa, e, por fim 3) uma crise estrutural. Vejamos.
1. Na esfera pessoal vemos que logo após a narrativa do ideal de comunidade fraterna e solidária, aparece uma tentativa de fraude por parte do casal Ananias e Safira (At. 5.1-11).
2. Na esfera administrativa. Sabemos que houve um aumento considerável no número de discípulos (At 6.1-6). Com o aumento do efetivo surgiu um novo problema: os cristãos de origem helênica estavam reclamando porque as suas viúvas recebiam as distribuições diárias só depois das hebreias e assim corriam o risco de ficar sem 9. Para este problema específico a comunidade primitiva elegeu também alguns helênicos para a tarefa distributiva.
3. Na esfera estrutural. Citando Jung Mo Sung ipsis litteris:
[...] quando a distribuição é maior do que a entrada ou a produção de recursos, chega uma hora em que os bens acabam e a fome se generaliza na comunidade de Jerusalém. Sem produção suficiente, não se pode consumir ou distribuir. Um modelo econômico-social enfocado somente na distribuição justa não é sustentável a longo prazo. Perante a fome na comunidade de Jerusalém, as comunidades cristãs de outras regiões fizeram doações para minorar o problema 10.
Em outro livro do mesmo autor (Desejo, Mercado & Religião), Mo Sung aponta para aquilo que considero ser uma possível solução para os problemas acima exposto, embora neste contexto o economista está tratando de Desejo Mimético, Exclusão Social e Cristianismo e não sobre a Comunidade Primitiva de Atos dos Apóstolos. Assim escreve:

Lutar pela vida dos pobres e excluídos das nossas sociedades passa pela urgente redistribuição de renda e de riqueza, pela mudança no sistema produtivo que permita uma melhor distribuição de renda e pelas profunda reformas na estrutura econômica, social e política 11.

Notas

1. Para uma visão contrária sobre o Marxismo e Cristianismo vide o texto O Marxismo e a Fé Cristã escrito por Richard J. Sturz. O texto encontra-se em BROWN, Colin. Filosofia e fé cristã. São Paulo. Edições Vida Nova, 1989.

De igual modo vide o capítulo 17 Ateísmos sistêmicos ou as ideologias da morte de Deus. MINOIS, George. História do ateísmo. São Paulo: Ed Unesp, 2012.

Para o alcance da secularização do cristianismo vide o capítulo 12 A ideologia religiosa em HOBSBAWN, Eric. A Era das Revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

Por fim vide
BOUCHER, Geoff. Marxismo. Editora Vozes. Petrópolis, RJ, 2012.

2. HOBSBAWN, Eric (Org.) História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 34.
3. Idem p. 35.
4.RENAN, Ernest. Vida de Jesus. São Paulo. Ed Martin Claret, 2006. p. 213.
5. RAMALHO, Jefferson. Jesus, o maior socialista que já existiu. São Paulo, Edições Terceira Via, 2017. pág 14.
6. Idem. p. 16-18.
7. Idem p. 90.
8. SUNG, Jung Mo. Cristianismo de libertação. São Paulo: Paulus, 2008. p. 76.
9. Idem p. 77.
10. Idem p.77.
11. ---------------- Desejo, mercado & religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2010. p. 75.





quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Ἀποκατάστασις: outra concepção do fim






O presente texto tem dois objetivos: 1) expor três resposta possíveis ao problema do mal como um ente eterno, isto é, inferno. Não adentro da maneira como deveria nas questões metafísicas, porém, na teológico-filosófica tendo como tripé o pensamento de três grandes teólogos: Rusell Norman Champlin, Andrés Torres Queiruga e Paul Tillich. Questões que giram em torno da Escatologia precisam ser levantadas para trazer a lúmen uma reflexão ponderada; 2) Ao falar sobre a Ἀποκατάστασις enfatizo que a teologia não é um monolítico acabado homogêneo em sua totalidade. Não existe ponto final em assuntos teológicos. Existem outras correntes de teor teológico que ainda respiram dentro da reflexão teológico-filosófica. Nenhuma "doutrina" (como a da Apokatástasis)  está totalmente esquecida. As doutrinas não nasceram como doutrinas, mas como reflexão de um espírito inquieto; como espírito (zeitgeist) de uma época. Uma vez surgido o conceito ele não deixa de existir. Em assuntos teológicos podemos seguramente falar de "sincretismo teológico" (termo meu) a semelhança de sincretismo religioso. As teologias modernas ressignificaram conceitos que remontam a Idade Média ou até mesmo antes em culturas antiquíssimas como a egípicia ou babilônica. Sobre a dialética entre pensamento e palavra nos dirá Alexandre Marques Cabral: "Pensar é semear sepulcros; é abrir espaço para enterrar palavras que não mais remetem àquilo de que falam. Entretanto, engana-se quem pensa este enterro como tão-somente sinal de morte. O pensamento não assassina palavras, mas a enraíza no solo de onde um dia provieram. Consequentemente, en-terrar é inserir na terra. O pensamento enterra, quando insere cada palavra na sua respectiva fonte, sua terra e, deste modo, abre campo para que elas possam ganhar nova vida". A exposição que se segue não tem caráter apologético e sim reflexivo. Não levanto bandeira para nenhum argumento exposto pois, aqui, escrevo na condição de ateu. Ateu não militante que em momento algum  fecha as portas para a religião.

Πάντων δὲ τὸ τέλος ἤγγικε.
Perto está o fim de todas as coisas.
1 Pe 4.7

A palavra fim significa tanto término quanto alvo. Segundo P. Tillich, esta palavra "é um excelente instrumento para expressar os dois aspectos do Reino de Deus, o transcendente e o intra-histórico". Sabemos que em algum momento a história cósmica chegará ao fim. A odisseia humana terá um fim. Mas "fim" também significa alvo na qual a palavra grega τέλος aponta para uma meta ou finalidade. Assim sendo: o fim da possibilidade biológica ou física da história não é o fim da história no sentido grego da palavra.
Provavelmente Rusell Norman Champlin (1933-2018) é/era o maior universalista contemporâneo, (me parece que Andrés Torres Queiruga segue no mesmo caminho com relativas variações como veremos adiante). A temática é exaustivamente tratada em seu Comentário Bíblico, Antigo e Novo Testamento, bem como no seu Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. No artigo "Universalismo" Champlin define como "a crença do bem-estar final de todos os homens, ou mesmo de todos os seres inteligentes, incluindo seres superiores aos homens". De maneira geral Universalismo é a crença de que todas as "almas humanas serão salvas". Para chegar a tais conclusões diz Champlin: "Antes, a verdade precisa proceder de toda espécie de investigação, com a ajuda da razão, da intuição e das experiências místicas" (...) "apesar de a Bíblia ser uma das fontes do conhecimento espiritual, ela não é a única fonte" (grifo meu). A crença universalista não redime apenas o homem caído, mas também, os anjos caídos serão devolvidos ao rei dos remidos. Dito isto, o autor da Enciclopédia de Bíblia... nos aconselha a examinarmos Ef. 1.9,10. (ainda Ef 1.23; Col 1.16; Jo 12.32). Cabe ao leitor verificar os vocábulos cognatos na Enciclopédia. O evangelho visto sob a ótica champliana é um evangelho otimista. Assim encerra ele suas considerações sobre a Restauração: A teologia da Igreja Ocidental (Romana Católica e as denominações protestantes e Evangélicas) tem preservado um profundo pessimismo na sua teologia sobre os destinos finais dos homens. A alma é estagnada seja nos céus ou no inferno. Estagnação é um conceito contrário a natureza da Deus. Os limites que os homens determinam são, meramente, os limites de suas próprias mentes. A teologia na Igreja Ortodoxa Oriental tem preservado uma teologia mais otimista, recusando cortar oportunidade da alma ao ponto da alma ao ponto da morte biológica. A Igreja Oriental segue as interpretações dos pais gregos; a Teologia da Igreja Ocidental segue as interpretações dos pais latinos. Na doutrina dos destinos finais dos homens, a Igreja Ortodoxa Oriental tem-se mostrado mais sábia".
Champlin chama a atenção para algo que não é tão popular entre  os evangélicos, talvez por seu caráter especulativo: A descida de Cristo ao Hades. Prosseguindo com seu otimismo Champlin gasta muita tinta na tentativa de justificar sua crença; crença excêntrica, mas não isolada. No artigo de mesmo nome (Descida de Cristo ao Hades), o teólogo segue a tradição teológica da Igreja Oriental que sustenta que Cristo realizou "uma missão redentora tridimensional: na terra; no hades; nos céus". O sustentáculo de Champlin são plurais, em parte encontra guarida em texto selecionados da Escritura canônica, em textos apócrifos e, na tradição teológica dos pais da igreja. Entende que a maioria desses apostólicos sustentam a "doutrina". Citando João Damasceno:

"Sua alma glorificada desce ao hades a fim de que, tal como o Sol da justiça, nasceu para os homens da terra, por igual modo, ele brilha sobre aqueles que, sob a terra, se assentam em trevas e na sombra da morte; a fim de que tal como ele publicou paz aos homens sobre a terra, dando livramento aos cativos e vista aos cegos e tornando-se a Causa da eterna salvação dos crentes, ao mesmo tempo que convencia de incredulidade os desobedientes, por igual modo, tratasse com os habitantes do hades, afim de que todo joelho se prostrasse ante ele nos céus, na terra e debaixo da terra, e para que, tendo assim solto as cadeias daqueles prisioneiros há muito confinados, ele retornasse dos mortos e preparasse para nós o caminho da ressurreição".

Cita ainda Clemente de Alexandria:

"Assim, para que os levasse ao arrependimento, o Senhor também pregou aos que estão no hades".

Outro sustentáculo da teologia de R.N.Champlin encontra-se no Novo Testamento. Ele oferece as seguintes passagens:

Ὅτι οὐκ ἐγκαταλείφεις τὴν ψυχήν  μου εἰς Ἁιδου
Porque não abandonarás minha alma no Hades
At 2.27

Οὐ κατελείφθη ἡ ψυχὴ αὐτου εἰς Ἁιδου
Não foi abandonado no Hades
At 2.31

Τὸ δὲ Ἀνέβη , τί ἐστιν εἰ μὴ ὅτι καὶ κατέβη  πρωτον εἰς τά κατώτερα μέρη τηε γησ
Que significa "subiu", senão que ele também desceu às profundezas da terra?
Ef. 4.9

Εἰς τουτο γὰρ καὶ νεκροις εὐηγγελίσθη ἵνα κριθωσι μὲν κατὰ ἀντρώπους σαρκί ζωσι δὲ κατὰ θεόν Πνευματι
Eis que a Boa Nova foi pregada também aos mortos, a fim de que sejam julgados como os homens na carne, mas  vivam no espírito, segundo Deus
1 Pe 4.6

Entre outras passagens.

Aconselho ao leitor que veja esses textos acima no Novo Testamento Interpretado, bem como os comentários exaustivos.

Ainda sobre a descida de Cristo ao Hades o historiador medieval Jacques Le Goff escreve: "Este também [Descida de Cristo aos infernos] conhecerá um grande sucesso na liturgia medieval: nas fórmulas de exorcismo, nos hinos, nas missas, nos tropos, e finalmente nos jogos dramáticos do fim da Idade Média. Mas é mediante as precisões dadas por um evangelho apócrifo, o Evangelho de Nicodemos, que o episódio se vulgarizou na Idade Média. Cristo, durante sua descida aos infernos retirou dali uma parte dos que estavam presos, os justos não batizados porque anteriormente à sua vinda sobre a terra, isto é, essencialmente aos patriarcas e os profetas".

No dito evangelho, encontramos uma descrição detalhada - quase jornalística - sobre a Descida de Cristo aos Infernos. Grosso modo, o evangelho apócrifo relata como várias pessoas ressuscitaram com Jesus e como Ele os tirara dos Infernos. Ficamos sabendo disso pela boca de dois neo-viventes, Karino e Léucipo. Quando perguntados "Dizei-nos irmãos e amigos, que são estas almas e estes corpos e quem são esses com quem ides caminhando, e como viveis no corpo, uma vez que morrestes faz tempo? Eles respondem como segue:

"ressuscitamos com Cristo desde os infernos e ele nos tirou dentre os mortos. E sabeis que ficaram agora destruídas as portas da morte e das trevas e as almas dos santos foram tiradas dali,e subiram ao céu com Cristo Nosso Senhor. E, inclusive mandou-nos o Senhor em pessoa para que durante certo tempo, vamos andar pelas margens do Jordão e pelos montes, sem que, no entanto, sejamos vistos e nem falemos com todos, senão somente com aqueles a quem ele julgar".


O teólogo católico Raymond E. Brown compartilha a ideia. Assim escreve em seu Introdução ao Novo Testamento:
Alguns vagos textos do NT indicam que Cristo, presumivelmente depois de sua morte, desceu às profundezas da terra (Rm 10.7; Ef 4.9), retirou de lá os santos mortos (Mt 27.52; Ef 4.8) e triunfou sobre as forças angélicas más (Fl 2.10; Cl 2.15). Entre os apócrifos do século II, a Ascensão de Isaías 9.16; 10.14; 11.23 mostra que Jesus despojou o anjo da morte antes de ressurgir dos mortos e subir ao céu, após o que os anjos e satanás adoraram-no. Nas Odes de Salomão 17.9; 42.15, Cristo abre as portas que estavam cerradas e aqueles que estavam mortos correm-lhe ao encontro.
É no Evangelho de Nicodemos que temos uma narrativa completa sobre a descida de Cristo ao Inferno. Mais adiante, no Credo apostólico, encontramos a seguinte sentença: "Desceu aos Infernos".

A questão da descida de Cristo ao Hades ainda se divide em dois motivos principais. Na tentativa de responder o porque Cristo desceu os teólogos se dividem em duas razões: 1) Por razões salvíficas. Sendo esta a interpretação mais antiga datando do começo do século II. R.N.Champlin adota essa razão. Assim escreve: "A maioria dos pais da igreja viam, nessa descida ao hades, a oferta de plena salvação aos perdidos que ali se encontravam. Em outras palavras, Cristo transformou o hades em um campo missionário"; 2) Por razões condenatórias. Se compararmos 1 Pe 3.19 à luz de 1 Pe 4.6, parece que pregar aos espíritos aprisionados é o mesmo que evangelizar os mortos como o intuito de salvação. Porém, Raymond E. Brown discorda. Segundo ele os dois versículos não se referem ao mesmo acontecimento. "Em 1 Pe 4.6, Cristo não faz o anúncio; ao contrário, o versículo refere-se à pregação sobre Cristo, que é a proclamação do evangelho"; ao passo que em 1 Pe 3.19, "o Cristo ressuscitado desce até lá para proclamar sua vitória e esmagar as forças satânicas". Obviamente o teólogo protestante discorda do católico, mas, como disse no início deste texto, a teologia não é homogênea.

Ἀποκατάστασις: outra concepção do fim

Vimos que a descida de Cristo ao hades é uma "doutrina" que ainda respira nos meios acadêmicos e no credo de muitos fiéis. Vimos que tal crença é ventilada em versículos neotestamentário. De acordo com a visão champliana, a descida ao hades tinha uma teleologia (τελοσ) que é a restauração de tudo (Ἀποκατάστασις). Champlin faz uma diferença entre Restauração e Redenção. "A restauração deve ser absoluta, de todos os seres. A salvação (redenção - grifo meu), é dos remidos".
O termo Apocatástese (Ἀποκατάστασις) significa reconstituição ou restabelecimento. Em sentido técnico, designa a doutrina segundo a qual, nos diversos ciclos cósmicos, tudo torna a reconstituir-se ciclicamente, restabelecendo-se nos mesmos estados precedentes.
Em pelo menos um versículo aparece o termo:

Ὅν δει οὐρανὸν μὲν δέζασθαι ἄχρι χρόνον ἀποκαταστάσεως πάντον ὥν ἐλάλησεν ὁ θεὸς διὰ στόματος πάντων των ἁγιων αὐτου προφετων ἀπ  αἰωνος
A que o céu deve acolher até os tempos da restauração de todas as coisas, das quais Deus falou pela boca dos seus santos profetas.
At 3.21



A mim parece que o eco mais  forte, levando em consideração o título desse texto (Ἀποκατάστασις/Apokatástasis) vêm de Orígenes de Alexandria.

(Continua...)


quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Amor: até que a morte (não) nos separe


Até que a morte (não) nos separe


Εριβαν Σιλβα*




"Pois o amor é tão forte quanto a morte..." 
(Ct 8.6 KJA)






Após o término da leitura de Carta a D. de André Gorz, tive a impressão de ter estado na sala do casal, André e Dorine, para uma conversa sobre amor. Mas não sobre qualquer amor, mas o amor deles. Um amor que sobreviveu 58 anos juntos, algo quase impossível de acontecer em nosso mundo líquido moderno. Após mais de meio século de vida a dois, Gorz escreve: "De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher". 

André Gorz não sabe explicar o por que amamos determinada pessoa "tive muitas dificuldades com o amor, pois é impossível explicar filosoficamente por que amamos determinada pessoa e queremos ser amados por ela, excluindo todas as outras". Essa impossibilidade de transferência do desejo pode ser vista na vida de Jacó, personagem bíblico. O desejo de Jacó por Raquel poderia ser substituído por Lia, mas não foi isso que aconteceu. Jacó queria Raquel. André queria Dorine. Esse amor possessivo-perene não pode ser explicado.

Carta a D. é uma carta que encarna um afeto que conhecemos como amor. Na leitura da missiva, fui obrigado a discordar do Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa) onde diz que "Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas". Não caro Pessoa, Carta a D. não é ridícula; é trágica. É sobre amor, um amor que se diz em vários sentidos.

Carta a D. é uma carta sobre o amor e o amar; sobre a morte e o morrer, por isso trágico. Para quem conhece a história do casal sabe que pouco tempo após a publicação da carta, André e Dorine cometem suicídio. Dorine estava com uma doença degenerativa. Não tinha mais muito tempo. Gorz, por sua vez, sofria vendo a esposa sofrer. "Procurei esse médico quando o seu estado de saúde se agravou dramaticamente. Você não conseguia mais se deitar, de tanto que a cabeça a fazia sofrer. Passava a noite em pé, na varanda, ou sentada numa poltrona. Eu queria acreditar que nós tínhamos tudo em comum, mas você estava sozinha na sua aflição". O amor pode ser experimentado a dois, já o sofrimento é hermético. Sem o objeto do seu amor, a vida do escritor perde o sentido, assim escreve: "Você é o essencial sem o qual todo o resto, importante apenas porque você existe, perderá o sentido e a importância". É a certeza de que a separação via mortis estava próxima, mas o temor de suportá-la não é tão certo assim.

"Você me deu toda sua vida e tudo de si; e eu gostaria de poder lhe dar tudo de mim durante o tempo que resta"(...) "Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos".

"Si ce n'est pas l'amour, Dieu que çu lui ressemble"
["Se isso não é amor, meu Deus, como se parece".] 
____ Juliette Gréco







*Εριβαν Σιλβα ou Erivan Silva fez filosofia. Atualmente cursa psicologia na Uninove-SP. É de sua preferência grafar seu nome em caracteres gregos; essa preferência é simbólica, aponta um retorno ao pensamento grego, gênese de todo pensamento ocidental.