quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Cristianismo e marxismo ideologias utópicas







Por Εριβαν Σιλβα

Numa primeira leitura pode parecer que cristianismo e marxismo não tenha nenhuma relação entre si, sobretudo porque Karl Marx (1818-1883) foi adotado como um dos baluartes contra a religião 1. Porém essa contradição é apenas aparente. Lembro ao leitor que há duas correntes que beberam do pensamento marxista: a Teologia da Libertação (corrente católica), e a Missão Integral (corrente protestante). Não tenho interesse de discorrer sobre essas duas vertentes, mas refletir sobre uma proximidade entre Cristo e Marx naquilo que entendo que antes de Marx/Engels já havia um "pré-comunismo" nos ensinamentos de Cristo e nos primeiros cristãos.

Pré-comunismo

O historiador britânico Eric Hobsbawn (1917-2012) escreve "[...] também os revolucionários gostam de ter antepassados"2. A genealogia do comunismo não é encontrada em Marx/Engels, mas antes deles. No livro História do Marxismo Vol. I encontramos o seguinte texto:

[...] a filosofia trazia do passado uma forte herança de comunitarismo, ou mesmo, em alguns casos, a ideia de que uma sociedade sem propriedade privada seria sob certos aspectos mais "natural" do que a caracterizada pela propriedade privada, ou, de qualquer modo, ser-lhe-ia historicamente anterior. Esse aspecto era particularmente enraizado na ideologia cristã: nada mais fácil do que ver no Cristo do Sermão da Montanha o "primeiro socialista" ou comunista; embora os primeiros pensadores socialistas, em sua maioria, não fossem cristãos, posteriormente muitos membros de movimentos socialistas consideraram útil essa reflexão 3.

De fato as bem-aventuranças do Sermão da Montanha começa com as seguintes palavras "felizes os pobres de coração: deles é o reino dos céus" (grifo meu). Aqui, a palavra pobre (gr πτωχός/ ptôchos) tem sentido amplo (vide Mt 11.5; 26.9,11; Lc 21.3; 2 Co 8.9).

Ernest Renan (1823-1892) em seu livro A Vida de Jesus também faz alusão a um cristianismo comunista. Em sua palavras:

Essas máximas, ideias para um país em que a vida se nutre de ar e luz, esse comunismo inofensivo  de uma turma de filhos de Deus, vivendo aconchegados no seio de seu Pai, podiam convir a uma seita ingênua, persuadida constantemente de que a utopia se realizaria (grifo meu) 4.

Sobre Atos: o comunismo dos primeiros seguidores de Jesus.

O historiador brasileiro Jefferson Ramalho escreveu um livro intitulado Jesus - o maior socialista que já existiu. Numa escrita corajosa e ousada, J. Ramalho não teme o anacronismo e aceita correr o risco de ser mal interpretado. Para quem entendeu a proposta do livro verá que está diante de uma obra ímpar cuja originalidade é fazer uma "releitura de situações específicas vividas por Jesus e por seus primeiros seguidores 5" (grifo meu).
Para que não haja mal entendimentos o historiador brasileiro define os dois conceitos-chave: socialismo e comunismo. "Ao pensar em Socialismo, referimo-nos à etapa intermediária do Comunismo. Contrariando-se à existência de diferentes classes sociais, exatamente por se opor às desigualdades e injustiças, o Socialismo defende que haja oportunidades plenamente iguais a todos" (...) Comunismo é uma ideologia política, econômica e social que tem por elementar objetivo a consolidação de uma sociedade sem desigualdades" 6.
Do livro Jesus, o maior... nos interessa o capítulo 12: O comunismo dos seus primeiros seguidores. Porém, antes de refletir sobre o capítulo em questão, faço aqui uma citação de Atos 4, mais especificamente os versículos 32-35:

E da multidão dos que creram, um só era o sentimento e a maneira de pensar. Ninguém considerava exclusivamente seu os bens que possuía, mas todos compartilhavam tudo entre si.
[...]
Não havia uma só pessoa necessitada entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o depositavam aos pés dos apóstolos, que por sua vez, o repartiam conforme a necessidade de cada um. (KJV)

Na versão Tradução Ecumênica (TEB), encontramos no versículo 32: 

A multidão daqueles que tinham abraçado a fé tinham um só coração e uma só alma.

Na Tradução Linguagem de Hoje (NTLH) lemos a primeira parte do mesmo versículo:

Todos os que creram pensavam e sentiam do mesmo modo.

Transcrevi três versões diferentes com o intuito de mostrar ao leitor que "o mesmo sentimento" e a "mesma maneira de pensar" era comum entre os fiéis; tanto que no grego koiné a tradução é como segue: a) mesmo sentimento, gr καρδία/kardia traduzido como coração; b) mesma maneira de pensar, gr ψυχή/psiché traduzido como alma.

Refletindo sobre o versículo de Atos dos Apóstolos J. Ramalho escreve:

Na comunidade descrita na narrativa dos Atos dos Apóstolos, porém, parece que havia outra dinâmica. Ali, seguindo o exemplo deixado por Jesus, os primeiros adeptos de sua mensagem, por viverem em plena união, compartilhavam tudo o que possuíam. Havia um desapego radical por parte daqueles que possuíam mais bens, pois chegavam a vender todas as suas propriedades e posses materiais para distribuir o dinheiro entre todas as pessoas, conforme as necessidades de algumas. Assim, ninguém passava por dificuldades, uma vez que havia solidariedade entre eles 7.

Seguindo a mesma linha do historiador, encontramos o teólogo e economista Jung Mo Sung fazendo uma reflexão análoga utilizando como objeto o mesmo texto em tela: At 4.32-35, contudo, Mo Sung parte de uma problemática implícita, sendo assim, seu teor é mais pessimista. Em um primeiro momento escreve:

Como a tradição da "esquerda" moderna sempre enfatizou a noção de igualdade social, é importante frisar que, no texto do livro dos Atos dos Apóstolos, o objetivo não é a igualdade, mas sim que não houvesse necessitados entre eles. Porque, para eles, mais importante do que a igualdade era que todos tivessem uma vida digna. Também porque pode existir uma situação de igualdade social marcada pela pobreza onde todos passam necessidades de uma forma igual 8 (grifo meu).

Em seguida três problemas são postos à discussão: 1) um de esfera pessoal, 2) outro na esfera administrativa, e, por fim 3) uma crise estrutural. Vejamos.
1. Na esfera pessoal vemos que logo após a narrativa do ideal de comunidade fraterna e solidária, aparece uma tentativa de fraude por parte do casal Ananias e Safira (At. 5.1-11).
2. Na esfera administrativa. Sabemos que houve um aumento considerável no número de discípulos (At 6.1-6). Com o aumento do efetivo surgiu um novo problema: os cristãos de origem helênica estavam reclamando porque as suas viúvas recebiam as distribuições diárias só depois das hebreias e assim corriam o risco de ficar sem 9. Para este problema específico a comunidade primitiva elegeu também alguns helênicos para a tarefa distributiva.
3. Na esfera estrutural. Citando Jung Mo Sung ipsis litteris:
[...] quando a distribuição é maior do que a entrada ou a produção de recursos, chega uma hora em que os bens acabam e a fome se generaliza na comunidade de Jerusalém. Sem produção suficiente, não se pode consumir ou distribuir. Um modelo econômico-social enfocado somente na distribuição justa não é sustentável a longo prazo. Perante a fome na comunidade de Jerusalém, as comunidades cristãs de outras regiões fizeram doações para minorar o problema 10.
Em outro livro do mesmo autor (Desejo, Mercado & Religião), Mo Sung aponta para aquilo que considero ser uma possível solução para os problemas acima exposto, embora neste contexto o economista está tratando de Desejo Mimético, Exclusão Social e Cristianismo e não sobre a Comunidade Primitiva de Atos dos Apóstolos. Assim escreve:

Lutar pela vida dos pobres e excluídos das nossas sociedades passa pela urgente redistribuição de renda e de riqueza, pela mudança no sistema produtivo que permita uma melhor distribuição de renda e pelas profunda reformas na estrutura econômica, social e política 11.

Notas

1. Para uma visão contrária sobre o Marxismo e Cristianismo vide o texto O Marxismo e a Fé Cristã escrito por Richard J. Sturz. O texto encontra-se em BROWN, Colin. Filosofia e fé cristã. São Paulo. Edições Vida Nova, 1989.

De igual modo vide o capítulo 17 Ateísmos sistêmicos ou as ideologias da morte de Deus. MINOIS, George. História do ateísmo. São Paulo: Ed Unesp, 2012.

Para o alcance da secularização do cristianismo vide o capítulo 12 A ideologia religiosa em HOBSBAWN, Eric. A Era das Revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

Por fim vide
BOUCHER, Geoff. Marxismo. Editora Vozes. Petrópolis, RJ, 2012.

2. HOBSBAWN, Eric (Org.) História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 34.
3. Idem p. 35.
4.RENAN, Ernest. Vida de Jesus. São Paulo. Ed Martin Claret, 2006. p. 213.
5. RAMALHO, Jefferson. Jesus, o maior socialista que já existiu. São Paulo, Edições Terceira Via, 2017. pág 14.
6. Idem. p. 16-18.
7. Idem p. 90.
8. SUNG, Jung Mo. Cristianismo de libertação. São Paulo: Paulus, 2008. p. 76.
9. Idem p. 77.
10. Idem p.77.
11. ---------------- Desejo, mercado & religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2010. p. 75.





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