quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Ἀποκατάστασις: outra concepção do fim






O presente texto tem dois objetivos: 1) expor três resposta possíveis ao problema do mal como um ente eterno, isto é, inferno. Não adentro da maneira como deveria nas questões metafísicas, porém, na teológico-filosófica tendo como tripé o pensamento de três grandes teólogos: Rusell Norman Champlin, Andrés Torres Queiruga e Paul Tillich. Questões que giram em torno da Escatologia precisam ser levantadas para trazer a lúmen uma reflexão ponderada; 2) Ao falar sobre a Ἀποκατάστασις enfatizo que a teologia não é um monolítico acabado homogêneo em sua totalidade. Não existe ponto final em assuntos teológicos. Existem outras correntes de teor teológico que ainda respiram dentro da reflexão teológico-filosófica. Nenhuma "doutrina" (como a da Apokatástasis)  está totalmente esquecida. As doutrinas não nasceram como doutrinas, mas como reflexão de um espírito inquieto; como espírito (zeitgeist) de uma época. Uma vez surgido o conceito ele não deixa de existir. Em assuntos teológicos podemos seguramente falar de "sincretismo teológico" (termo meu) a semelhança de sincretismo religioso. As teologias modernas ressignificaram conceitos que remontam a Idade Média ou até mesmo antes em culturas antiquíssimas como a egípicia ou babilônica. Sobre a dialética entre pensamento e palavra nos dirá Alexandre Marques Cabral: "Pensar é semear sepulcros; é abrir espaço para enterrar palavras que não mais remetem àquilo de que falam. Entretanto, engana-se quem pensa este enterro como tão-somente sinal de morte. O pensamento não assassina palavras, mas a enraíza no solo de onde um dia provieram. Consequentemente, en-terrar é inserir na terra. O pensamento enterra, quando insere cada palavra na sua respectiva fonte, sua terra e, deste modo, abre campo para que elas possam ganhar nova vida". A exposição que se segue não tem caráter apologético e sim reflexivo. Não levanto bandeira para nenhum argumento exposto pois, aqui, escrevo na condição de ateu. Ateu não militante que em momento algum  fecha as portas para a religião.

Πάντων δὲ τὸ τέλος ἤγγικε.
Perto está o fim de todas as coisas.
1 Pe 4.7

A palavra fim significa tanto término quanto alvo. Segundo P. Tillich, esta palavra "é um excelente instrumento para expressar os dois aspectos do Reino de Deus, o transcendente e o intra-histórico". Sabemos que em algum momento a história cósmica chegará ao fim. A odisseia humana terá um fim. Mas "fim" também significa alvo na qual a palavra grega τέλος aponta para uma meta ou finalidade. Assim sendo: o fim da possibilidade biológica ou física da história não é o fim da história no sentido grego da palavra.
Provavelmente Rusell Norman Champlin (1933-2018) é/era o maior universalista contemporâneo, (me parece que Andrés Torres Queiruga segue no mesmo caminho com relativas variações como veremos adiante). A temática é exaustivamente tratada em seu Comentário Bíblico, Antigo e Novo Testamento, bem como no seu Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. No artigo "Universalismo" Champlin define como "a crença do bem-estar final de todos os homens, ou mesmo de todos os seres inteligentes, incluindo seres superiores aos homens". De maneira geral Universalismo é a crença de que todas as "almas humanas serão salvas". Para chegar a tais conclusões diz Champlin: "Antes, a verdade precisa proceder de toda espécie de investigação, com a ajuda da razão, da intuição e das experiências místicas" (...) "apesar de a Bíblia ser uma das fontes do conhecimento espiritual, ela não é a única fonte" (grifo meu). A crença universalista não redime apenas o homem caído, mas também, os anjos caídos serão devolvidos ao rei dos remidos. Dito isto, o autor da Enciclopédia de Bíblia... nos aconselha a examinarmos Ef. 1.9,10. (ainda Ef 1.23; Col 1.16; Jo 12.32). Cabe ao leitor verificar os vocábulos cognatos na Enciclopédia. O evangelho visto sob a ótica champliana é um evangelho otimista. Assim encerra ele suas considerações sobre a Restauração: A teologia da Igreja Ocidental (Romana Católica e as denominações protestantes e Evangélicas) tem preservado um profundo pessimismo na sua teologia sobre os destinos finais dos homens. A alma é estagnada seja nos céus ou no inferno. Estagnação é um conceito contrário a natureza da Deus. Os limites que os homens determinam são, meramente, os limites de suas próprias mentes. A teologia na Igreja Ortodoxa Oriental tem preservado uma teologia mais otimista, recusando cortar oportunidade da alma ao ponto da alma ao ponto da morte biológica. A Igreja Oriental segue as interpretações dos pais gregos; a Teologia da Igreja Ocidental segue as interpretações dos pais latinos. Na doutrina dos destinos finais dos homens, a Igreja Ortodoxa Oriental tem-se mostrado mais sábia".
Champlin chama a atenção para algo que não é tão popular entre  os evangélicos, talvez por seu caráter especulativo: A descida de Cristo ao Hades. Prosseguindo com seu otimismo Champlin gasta muita tinta na tentativa de justificar sua crença; crença excêntrica, mas não isolada. No artigo de mesmo nome (Descida de Cristo ao Hades), o teólogo segue a tradição teológica da Igreja Oriental que sustenta que Cristo realizou "uma missão redentora tridimensional: na terra; no hades; nos céus". O sustentáculo de Champlin são plurais, em parte encontra guarida em texto selecionados da Escritura canônica, em textos apócrifos e, na tradição teológica dos pais da igreja. Entende que a maioria desses apostólicos sustentam a "doutrina". Citando João Damasceno:

"Sua alma glorificada desce ao hades a fim de que, tal como o Sol da justiça, nasceu para os homens da terra, por igual modo, ele brilha sobre aqueles que, sob a terra, se assentam em trevas e na sombra da morte; a fim de que tal como ele publicou paz aos homens sobre a terra, dando livramento aos cativos e vista aos cegos e tornando-se a Causa da eterna salvação dos crentes, ao mesmo tempo que convencia de incredulidade os desobedientes, por igual modo, tratasse com os habitantes do hades, afim de que todo joelho se prostrasse ante ele nos céus, na terra e debaixo da terra, e para que, tendo assim solto as cadeias daqueles prisioneiros há muito confinados, ele retornasse dos mortos e preparasse para nós o caminho da ressurreição".

Cita ainda Clemente de Alexandria:

"Assim, para que os levasse ao arrependimento, o Senhor também pregou aos que estão no hades".

Outro sustentáculo da teologia de R.N.Champlin encontra-se no Novo Testamento. Ele oferece as seguintes passagens:

Ὅτι οὐκ ἐγκαταλείφεις τὴν ψυχήν  μου εἰς Ἁιδου
Porque não abandonarás minha alma no Hades
At 2.27

Οὐ κατελείφθη ἡ ψυχὴ αὐτου εἰς Ἁιδου
Não foi abandonado no Hades
At 2.31

Τὸ δὲ Ἀνέβη , τί ἐστιν εἰ μὴ ὅτι καὶ κατέβη  πρωτον εἰς τά κατώτερα μέρη τηε γησ
Que significa "subiu", senão que ele também desceu às profundezas da terra?
Ef. 4.9

Εἰς τουτο γὰρ καὶ νεκροις εὐηγγελίσθη ἵνα κριθωσι μὲν κατὰ ἀντρώπους σαρκί ζωσι δὲ κατὰ θεόν Πνευματι
Eis que a Boa Nova foi pregada também aos mortos, a fim de que sejam julgados como os homens na carne, mas  vivam no espírito, segundo Deus
1 Pe 4.6

Entre outras passagens.

Aconselho ao leitor que veja esses textos acima no Novo Testamento Interpretado, bem como os comentários exaustivos.

Ainda sobre a descida de Cristo ao Hades o historiador medieval Jacques Le Goff escreve: "Este também [Descida de Cristo aos infernos] conhecerá um grande sucesso na liturgia medieval: nas fórmulas de exorcismo, nos hinos, nas missas, nos tropos, e finalmente nos jogos dramáticos do fim da Idade Média. Mas é mediante as precisões dadas por um evangelho apócrifo, o Evangelho de Nicodemos, que o episódio se vulgarizou na Idade Média. Cristo, durante sua descida aos infernos retirou dali uma parte dos que estavam presos, os justos não batizados porque anteriormente à sua vinda sobre a terra, isto é, essencialmente aos patriarcas e os profetas".

No dito evangelho, encontramos uma descrição detalhada - quase jornalística - sobre a Descida de Cristo aos Infernos. Grosso modo, o evangelho apócrifo relata como várias pessoas ressuscitaram com Jesus e como Ele os tirara dos Infernos. Ficamos sabendo disso pela boca de dois neo-viventes, Karino e Léucipo. Quando perguntados "Dizei-nos irmãos e amigos, que são estas almas e estes corpos e quem são esses com quem ides caminhando, e como viveis no corpo, uma vez que morrestes faz tempo? Eles respondem como segue:

"ressuscitamos com Cristo desde os infernos e ele nos tirou dentre os mortos. E sabeis que ficaram agora destruídas as portas da morte e das trevas e as almas dos santos foram tiradas dali,e subiram ao céu com Cristo Nosso Senhor. E, inclusive mandou-nos o Senhor em pessoa para que durante certo tempo, vamos andar pelas margens do Jordão e pelos montes, sem que, no entanto, sejamos vistos e nem falemos com todos, senão somente com aqueles a quem ele julgar".


O teólogo católico Raymond E. Brown compartilha a ideia. Assim escreve em seu Introdução ao Novo Testamento:
Alguns vagos textos do NT indicam que Cristo, presumivelmente depois de sua morte, desceu às profundezas da terra (Rm 10.7; Ef 4.9), retirou de lá os santos mortos (Mt 27.52; Ef 4.8) e triunfou sobre as forças angélicas más (Fl 2.10; Cl 2.15). Entre os apócrifos do século II, a Ascensão de Isaías 9.16; 10.14; 11.23 mostra que Jesus despojou o anjo da morte antes de ressurgir dos mortos e subir ao céu, após o que os anjos e satanás adoraram-no. Nas Odes de Salomão 17.9; 42.15, Cristo abre as portas que estavam cerradas e aqueles que estavam mortos correm-lhe ao encontro.
É no Evangelho de Nicodemos que temos uma narrativa completa sobre a descida de Cristo ao Inferno. Mais adiante, no Credo apostólico, encontramos a seguinte sentença: "Desceu aos Infernos".

A questão da descida de Cristo ao Hades ainda se divide em dois motivos principais. Na tentativa de responder o porque Cristo desceu os teólogos se dividem em duas razões: 1) Por razões salvíficas. Sendo esta a interpretação mais antiga datando do começo do século II. R.N.Champlin adota essa razão. Assim escreve: "A maioria dos pais da igreja viam, nessa descida ao hades, a oferta de plena salvação aos perdidos que ali se encontravam. Em outras palavras, Cristo transformou o hades em um campo missionário"; 2) Por razões condenatórias. Se compararmos 1 Pe 3.19 à luz de 1 Pe 4.6, parece que pregar aos espíritos aprisionados é o mesmo que evangelizar os mortos como o intuito de salvação. Porém, Raymond E. Brown discorda. Segundo ele os dois versículos não se referem ao mesmo acontecimento. "Em 1 Pe 4.6, Cristo não faz o anúncio; ao contrário, o versículo refere-se à pregação sobre Cristo, que é a proclamação do evangelho"; ao passo que em 1 Pe 3.19, "o Cristo ressuscitado desce até lá para proclamar sua vitória e esmagar as forças satânicas". Obviamente o teólogo protestante discorda do católico, mas, como disse no início deste texto, a teologia não é homogênea.

Ἀποκατάστασις: outra concepção do fim

Vimos que a descida de Cristo ao hades é uma "doutrina" que ainda respira nos meios acadêmicos e no credo de muitos fiéis. Vimos que tal crença é ventilada em versículos neotestamentário. De acordo com a visão champliana, a descida ao hades tinha uma teleologia (τελοσ) que é a restauração de tudo (Ἀποκατάστασις). Champlin faz uma diferença entre Restauração e Redenção. "A restauração deve ser absoluta, de todos os seres. A salvação (redenção - grifo meu), é dos remidos".
O termo Apocatástese (Ἀποκατάστασις) significa reconstituição ou restabelecimento. Em sentido técnico, designa a doutrina segundo a qual, nos diversos ciclos cósmicos, tudo torna a reconstituir-se ciclicamente, restabelecendo-se nos mesmos estados precedentes.
Em pelo menos um versículo aparece o termo:

Ὅν δει οὐρανὸν μὲν δέζασθαι ἄχρι χρόνον ἀποκαταστάσεως πάντον ὥν ἐλάλησεν ὁ θεὸς διὰ στόματος πάντων των ἁγιων αὐτου προφετων ἀπ  αἰωνος
A que o céu deve acolher até os tempos da restauração de todas as coisas, das quais Deus falou pela boca dos seus santos profetas.
At 3.21



A mim parece que o eco mais  forte, levando em consideração o título desse texto (Ἀποκατάστασις/Apokatástasis) vêm de Orígenes de Alexandria.

(Continua...)


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