domingo, 2 de dezembro de 2018

Erva-doce

Erva-doce



Εριβαν Σιλβα*



A água na chaleira em ponto de ebulição fazia a válvula apitar. A xícara posta na mesa seguida por bolachas de maizena e pão.
"Quer chá José?"
"Chá de quê?
"Erva-doce"
"Quero!"
"Vai querer chá José Filho?"
"Não! Chá é coisa para doentes". Disse enquanto assistia a mais um clip de Madonna.
José Filho era o filho do meio da família Silva. Destoava dos demais irmãos, visto que era loiro e tinha os olhos azuis. A mãe morena e o pai negro, não fossem os esteriótipos físicos ninguém dizia que era do mesmo sangue.
A família era evangélica. Seo José, o pai, era pastor de uma igreja que ele mesmo fundara. O próprio Deus tinha lhe dado um ministério. Dona Maria, a mãe, seguia o esposo onde quer que fosse. Vinha do catolicismo e convertera-se recentemente por influência do esposo que "já era batizado no Espírito Santo e falava em línguas". Os demais filhos não vem ao caso agora. José, o filho é quem nos interessa. Alto, atlético não andava: desfilava. Qualquer que o visse pela primeira vez dizia que "dava para modelo". Isso deixava o garoto bem orgulhoso de si. Quando nasceu era o bebê mais bonito de Quipapá. Gostava de mostrar suas fotos de infante esperando os elogios que sempre vinham.
José acreditava em Deus mas não ia à igreja por mais que seus pais insistissem. O rapaz também tinha traquejo para a dança. Imitava com perfeição Madonna, Beyoncé e Lady Gaga. Com seus vinte e poucos anos tinha os hormônios em ebulição a todo instante. Não trabalhava, assim, ficava o dia inteiro dançando e infernizando a vida do gato, animal de estimação da família, que não conseguia dormir em paz pois José o punha no colo forçando-o a assistir os clips musicais. Se o gato falasse mandava-o se foder.
Não era só a dança e o gato que tinha a atenção do galego. Sua vizinha tirava seu sono. Eva era daquelas negras da bunda grande que chamava a atenção por onde passava. Já tinha cinco filhos, mesmo assim, mantinha um corpo de bronze desejável por muitos homens inclusive nosso protagonista. José estava cansado da auto-satisfação e tinha planos de pegar "aquela nega".
Certa noite, planejou que iria à casa da Eva. Mas não como visitante, pularia o muro com a desculpa de buscar o gato. Há dias que percebera que Eva lhe olhava de um modo estranho, com certeza ela também queria. Se dava para os outros porque não a ele? Se Reginaldo havia conseguido ele também poderia. O plano seria posto em prática essa noite. Pularia o muro indo para o quintal da vizinha, por certo ela se assustaria com o barulho, ele chamaria o gato; ela ouviria sua voz, abriria a porta e diria "veja se o gato entrou na minha casa, José". O plano era perfeito.
22 horas. Os pais já foram dormir. Só esperar mais um pouco. O gato ronronava no sofá cansado das músicas de sempre. José assistia pela décima vez o clip da Lady Gaga. 01 hora da manhã. O silêncio reinava absoluto madrugada a dentro. "Mãos-a-obra". Saiu. Improvisou uma escada com um cavalete e subiu no muro de mais de dois metros. Estava muito escuro, não dava pra ver o chão do outro lado, para onde pularia. "Puta merda, e agora? Pulo ou não pulo?" Pensou consigo ponderando os riscos. "Que se foda! Hoje eu cato a Eva". Pulou. Não contava porém com o terreno irregular e cheio de entulhos. Caiu com toda força no chão escuro. Sentiu braços e pernas baterem em vergalhões, bateu a cabeça e o estômago foi recebido com um forte golpe numa viga de madeira; perdeu o fôlego. Quando este retornou aos pulmões, gritou "Aaaaiiiiii! Me aajuuudeeemm!".
Todos acordaram com o grito de socorro. O bichano foi o primeiro a fugir do sofá em direção ao quarto como quem foge de um pitbull. José pai levantou-se assustado "Meu Deus do céu, o que foi isso?"
"Parece a voz do José Filho. Cadê ele?" Disse Maria.
A televisão estava ligada passando Beyoncé e suas dançarinas. Súbito, José apareceu todo ensanguentado e mancando. Antes que alguém perguntasse alguma coisa ele já foi se explicando com voz chorosa "Eu fui buscar o gato e cai do muro".


***

Noite do outro dia. 
Dona Maria fervia a água para o chá noturno.  Seo José lia a Bíblia com dificuldades que tinha com a gramática. José Filho, cheio de ataduras e curativos alisava o gato enquanto via Madonna.
"Quer chá José?" Deixando a Bíblia de lado, baixando os óculos ele pergunta "chá de quê?"
"Erva-doce"
"Quero!"
Virando-se para o filho quebrado "Quer chá, filho? É de erva-doce"
"Quero sim, mãe"
Enquanto tomava o chá, José, bolava outro plano na mente. Esse sim daria certo. Primeiro precisava se recuperar.






*Εριβαν Σιλβα ou Erivan Silva fez filosofia. Atualmente cursa psicologia na Uninove-SP. É de sua preferência grafar seu nome em caracteres gregos; essa preferência é simbólica, aponta um retorno ao pensamento grego, gênese de todo pensamento ocidental.