quinta-feira, 17 de março de 2016

Política do ódio

Política do ódio
 
Por Erivan Silva
 
 
Assim inicia-se a Ilíada, um dos textos fundantes do Ocidente: "Canta, ó Musa, a ira de Aquiles, filho de Peleu, que incontáveis males trouxe às hostes dos aqueus." Para aqueles que querem se aprofundar nessa temática sugiro a leitura de Ira e Tempo do Peter Sloterdijk. O autor não se atém apenas à Ilíada mas, também, a outro livro que de igual modo é fundamental às nossas raízes ocidentais, i. é, a Bíblia Sagrada. Segundo Sloterdijk "a ira de Aquiles também tem em comum com a ira de Javé, do antigo deus das tempestades e dos desertos..." Ora, o Novo Testamento não difere no quesito ira. Um deus irado aceita como sacrifício a morte de seu próprio filho para lhe aplacar a fúria. Entre as Eras* de Hobsbawn seria conveniente acrescentar uma nova era: A Era do ódio. Pelo menos é essa a impressão que tenho ao observar o quadro político-social no Brasil, sobretudo nesses últimos anos. Temos um patrimônio cognitivo pautado no ódio., na repulsa, na xenofobia. "O ódio nunca é cego, mas sim clarividente" nos dirá Heidegger. Sim, o ódio enxerga muito bem seu objeto; distingue cor, raça, opção sexual, posição econômica... O ódio sabe muito bem quem e quando atacar. Freud diz que essa agressividade contra o outro é uma satisfação do animal humano. Vejamos um trecho de O Mal-Estar da civilização:
 
"...os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa cota de agressividade.
 
Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utiliza-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilha-lo, causar-lhe sofrimento, tortura-lo e mata-lo."
 
Somos tentados a aceitar que o ódio é o oposto ao amor. Nada mais longe da verdade. O antônimo do amor é a indiferença não o ódio. A filósofa brasileira Marcia Tiburi diz que: "Não acabaremos com o ódio pregando o amor, mas agindo em nome de um diálogo que não apenas mostre que o ódio é impotente, mas que o torne impotente." Tornar o ódio impotente nesse mar de fúrias é o desafio dessa nova "era". O ódio como um ente abstrato toma conta do corpo. Cria para si uma nova linguagem sistêmica tanto objetiva quanto subjetiva. Eu arriscaria dizer que a televisão (leia-se mídia) é hoje a grande responsável pela disseminação do ódio. "A televisão tenta administrar os afetos das pessoas." (Tiburi) Ainda falando sobre a televisão, Marcia Tiburi prossegue: "As pessoas não fazem ideia dos malefícios que a televisão causa em suas vidas. Um malefício político, porque de tanto ver televisão são convencidas a ficar em casa trancadas e bem distantes das questões políticas, que decidem sobre suas próprias vidas. Veem bandidos na televisão e acham que, diante da televisão, estão a salvo deles. A televisão lhes oferece imagens de crimes e, ao mesmo tempo, oferece a prisão diante da tela dentro de casa." isso acontece em parte porque no Brasil se substitui televisão por livros. A televisão funciona como uma prótese dos sentimentos. Forma consumidores de ódio sem causa; esse é o chamado preconceito. É claro que ninguém deve pregar o fim dos meios de comunicação mas sim mudanças no seu funcionamento. A televisão é uma experiência intelectual e de conhecimento, só que empobrecida. Lembremo-nos de que em meados do século XIX, aparece a imprensa de massa, surge um novo ator: a opinião pública, tal como a chamamos hoje. A imprensa faz, constrói, cria opinião pública. Como diz Pierre Bourdieu, "a opinião pública não existe, ela é o reflexo dos meios de comunicação."
 
O filósofo esloveno Slavoj Zizek nos chama a atenção para uma expressão da língua persa, war nam nihadan, que quer dizer "matar uma pessoa, enterrar o corpo e plantar flores sobre a cova para escondê-la." Pensado no contexto histórico dos acontecidos da Primavera Árabe e do movimento Occupy Wall Street Zizek diz: "A tarefa primeira da ideologia hegemônica era neutralizar a verdadeira dimensão desses eventos: a reação predominante da mídia não foi exatamente um war nam nihadan? A mídia estava matando o potencial emancipatório radical desses eventos ou encobrindo sua ameaça à democracia, e então plantando flores sobre o cadáver enterrado".
 
Usando a mesma analogia no contexto brasileiro vejo que a mídia tem feito a mesma coisa, um war nam nihadan. Estão, através da televisão e demais redes sociais, matando o poder emancipatório do povo; estão matando a democracia, a justiça e no lugar dela plantam flores, isto é, pregam que sem o partido vigente no poder o Brasil será uma potência mundial emparelhada com os EUA; e o que é melhor: Sem corrupção. Hoje a mídia tem feito um grande desfavor para a sociedade. Promove a xenofobia, a inveja, o ódio, o consumo desenfreado, a coisificação do humano... Sabe o que é pior? É que muitos compram essas ideias, inflam-se de ódio e saem às ruas achando que são originais; acham que estão fazendo um grande favor ao Brasil: plantar flores sobre o cadáver da democracia.
 
 
* Era do capital,
Era das revoluções,
Era dos extremos.
 
 
BIBLIOGRAFIA
 
HOMERO - Ilíada, a - Rio de Janeiro Ed Ediouro, 1998.
TIBURI, Marcia - Como conversar com um fascista, reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro. Ed Record, 2015.
SLOTERDIJK, Peter - Ira e tempo, ensaio político-psicológico. São Paulo. Ed Estação Liberdade, 2012.
ZIZEK, Slavoj - Ano em que sonhamos perigosamente, o. São Paulo. Ed Boitempo, 2012.

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