segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Depois do enterro...*

Depois do enterro é preciso reorganizar a casa. Há o momento da volta do sepultamento, quando as liturgias da morte se fizeram silenciosas, e se encontra com o espaço vazio que ficou, e agora o que existe ali é a presença de uma ausência. Antes havia alguém que, de um jeito ou de outro, era um centro em torno do qual aconteciam gestos e sentimentos. Agora, que gestos fazer? Objetos, roupas, retratos, a cama, o lugar à mesa, as rotinas... Continuam lá, recusam-se a ser enterrados. Vivos silenciosamente nos perguntam: "E agora? que é que você vai fazer?" Começa então um outro sepultamento. Abrem as janelas do quarto para arejar - é o que dizem. Penso que talvez seja mais para exorcizar os últimos odores da morte. Depois, as roupas que não mais serão usadas pelo dono e que deverão ser dadas. Sua presença nos armários causa incômodo por estarem cheias de um corpo que não voltará mais. Por vezes é o contrário. Meu amigo deixou o quarto do filhinho morto do mesmo jeito, cama arrumada, brinquedos sobre as estantes, como se ele estivesse prestes a voltar. "Saudade é o revés do parto. É arrumar o quarto para o filho que já morreu..." Passados muitos meses, recebi dele um poema sem explicações. Escrevera para o filho, dizendo de como a vida continuara, de como ele estivera presente em tudo, e em especial naquele quarto que ali ficara como continuação sua, uma recusa de aceitar o "nunca mais". Mas, no final ele dizia: "Acontece que o dia está bonito, o céu está azul, o ar está quente e o mar continua convidando como sempre. Quer saber de uma coisa? Vou é colocar um shorts e tomar um banho de mar..." Aos poucos retoma o seu ritmo e os espaços se reorganizam.

  Mas há que reorganizar as memórias, pois é lá que continua o diálogo silencioso com quem já morreu. A Cecília Meireles perguntava à sua avó morta, ante o espanto de sua nova forma "imóvel, definitiva, modelada pela noite, pelas estrelas, por suas mãos": "Onde ficou teu outro corpo? Na parede? Nos móveis? No teto? Inclinei-me sobre teu rosto, absoluta como um espelho. E tristemente te procurava..."

 Que memória guardar? Aquela do corpo morto? Não, queremos um outro corpo, aquele com quem continuaremos a conversar. É como se a morte de repente, nos dissesse que a verdade se encontra num outro lugar, o corpo verdadeiro da pessoa que morreu é um outro, que precisa ser reencontrado para ser guardado. Roland Bharthes foi para os álbuns de fotografias antigas. Queria descobrir alguma foto onde pudesse receber a aura que sempre cercava o corpo de sua mãe e que continuava viva nele (lugar de sua saudade). Até que a encontrou, de sua mãe menina.

 Depois da morte viramos artistas: a saudade se encarrega de reconstruir uma imagem...

 Quando chega a hora da morte, chega a hora de contar estórias. É assim que a imagem amada continua viva dentro de nós. E, quer saibamos disso ou não, o fato é que somos que moram dentro de nós. Somos as estórias que contamos. A hora da saudade é quando nos impomos silêncio  e aí, talvez possamos ouvir aquilo que nunca ouvimos, enquanto os mortos estavam vivos. A morte não deixa de ser a hora da verdade. E, com isso, nos tornamos um pouco mais verdadeiros e pensamos nos mundos que moram dentro de nós, e que só se tornarão visíveis depois que partimos. Então os vivos ouvirão melhor o nosso silêncio.

* Trecho do livro: Tempus fugit. Rubem Alves


Mas quando a esperança se vai a morte se aproxima.
O sofrimento perde o sentido.
Não mais dores de parto, mas funeral de um futuro que se amava...

Nenhum comentário:

Postar um comentário