domingo, 14 de fevereiro de 2016

Uma estadia no inferno, o regresso do Hades


UMA ESTADIA NO INFERNO, O REGRESSO DO HADES
Por Erivan Silva*



     Na Divina Comédia às portas do inferno dentre outros dizeres estava escrito: Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate[1]. Ele se refere a uma entrada sem saída, a um caminho sem retorno, a uma viagem só de ida... Porém não é assim que acontece com o personagem Hugh Glass, interpretado pelo ilustre Leonardo DiCaprio. The Revernat, filme baseado em fatos reais, se passa em 1822 (1823?) e conta a história de Hugh Glass um caçador de peles que após ser atacado por um urso é abandonado por seu grupo para morrer. Mas Glass misteriosamente sobrevive e começa uma longa jornada de retorno. Literalmente sai do Hades (comumente traduzido por sepultura) em busca de vingança. Pode-se dizer que Glass retornou do mundo dos mortos, isto é, do inferno.
     O título desse breve comentário nos lembra Arthur Rimbaud em seu escrito UMA ESTADIA NO INFERNO. Logo no início da obra, Rimbaud diz: Un soir, j'ai assis la Beauté sur mes genoux. Et je l'ai trovée amère. Et je l'ai injuriée[2]. Injuriar a Beleza é a virtude daques que vieram do inferno. O filme, cujas imagens são verdadeiras obras de arte, enfatiza o processo de desumanização de um homem abandonado. Glass passa a viver como um animal, sob a pele do mesmo urso que quase o matou. Se alimenta de carcaças de animais, raízes, peixe cru e até fígado de búfalo; tal qual um feto, faz do ventre de um cavalo seu habitáculo contra uma terrível tempestade de neve. Convém salientar que Hugh Glass teve suas cordas vocais dilaceradas pelas garras do urso. Sendo assim, temos uma película quase sem fala. O diretor do filme, o mexicano Alejandro González Iñarritu, disse numa entrevista:
"Leo (Leonardo DiCaprio) é atacado por um urso e, após isso, vira um personagem silencioso. Muita coisa acontecendo, mas nenhuma palavra. Para mim, essa é a essência do cinema: Não se basear em palavras, mas em imagens e emoções.[3]"
Em entrevista ao Grantland, Leonardo DiCaprio disse:
"Foi um desafio diferente para mim, pois eu interpretei vários personagens que falavam muito. Era algo que eu queria muito investigar - fazer um personagem que não diz quase nada. Como você transmite uma jornada emocional e se relaciona com a angústia de um homem sem dizer uma palavra?"[4]
     O silêncio é a marca dos sofredores. DiCaprio fez uma interpretação selvagem. Sem carisma e o charme dos outros trabalhos do ator, aqui, em The Revernat, temos um escrupuloso retrato do sofrimento humano. É um filme sobre a angústia humana onde o clímax é quando o personagem está preso em seu próprio corpo e assiste impotente a morte do próprio filho. Vemos nessa cena um tipo de patripassianismo onde está em foco o sofrimento de um pai impotente. Impotente mas não impessoal.
     Sendo pois um filme sobre a angústia humana, qual será pois nossa atitude diante dela? Étienne Borne responde da seguinte maneira: "Várias atitudes são possíveis: enganar a angústia e transfigurá-la ou acalmá-la imaginariamente através do mito e da arte..." [5] Nos parece que Glass transfigura sua angústia em vingança. Iñarritu diz que O Regresso não é uma história de vingança comum. Mas ainda assim eu entendo que a "vingança é um prato que se come frio", Glass o saboreia gelado. A vingança é o combustível que move o homem cuja alma foi perdida em algum lugar. Deus não criou dois lugares: o céu e o inferno, mas apenas um: a Terra que funciona hibridamente tanto como céu quanto  como inferno. Sendo assim, o céu de Glass logo se transforma num inferno particular. Tenho a impressão que Glass não apenas transfigura sua angústia em vingança mas, também, a acalma recorrendo constantemente às suas alucinações. A todo instante Glass tem "flashs" de memória. "Torture subtile, naise; source de mes divagations spirituelles."[6] Lembranças da sua esposa indígena que sempre lhe aparece em momentos de devaneio. Além do mais, logo após a morte do filho, tem uma misteriosa visão ou sonho. Entra nas ruínas de uma catedral e abraça seu filho. Entendo que essa catedral em ruínas é símbolo do próprio Glass. Do seu corpo. Totalmente destruído, mas ainda de pé; ao fundo da parede há uma imagem do Cristo crucificado, o amado Filho de Deus, que foi morto diante dos  olhos do Pai, e Deus não fez nada para impedir essa morte cruenta. (Talvez porque seja tão impotente quanto Glass). Há ainda de se notar a presença de um sino que badala incessantemente, porém som algum é ouvido. Seria pois símbolo do Glass sem voz? Penso que sim. "No silêncio uma catedral, um templo em mim"[7]. No pensamento cristão templo é tanto o símbolo do corpo de Jesus quanto símbolo do corpo do crente; "não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?" [8] No filme o templo simboliza Glass que mesmo destruído mantém intacta a imagem do filho que sofre e morre.
     Esperança se confunde com vingança. Não sabemos se Glass quer apenas sobrevier ou sobreviver para um fim: vingar-se. Minha dúvida surge do fato de que em algum momento do filme somos lembrados do texto do apóstolo Paulo aos Romanos: "A mim pertence a vingança, eu é que retribuirei, diz o Senhor"[9] Ou seja, não cabe a Glass fazer justiça com as próprias mãos? Pertencerá pois a vingança a um Deus impotente que não polpa ninguém do sofrimento nem mesmo seu Filho? Sobre essa questão pedirei ao leitor que assista o filme e tire sua próprias conclusões.
     O Regresso é um filme envolvente. A câmera vai muito além de observar. Ela instiga à ação. Você se sente dentro do filme e, pode acreditar, chega a sentir até frio. Os personagens são visivelmente arquétipos do antropopatismo humano. Vejamos pois: Jim Bridger (interpretado por Will Pouter) é aquele que vive atormentado por sua consciência. "não devíamos ter abandonado o senhor Glass". Sua consciência é aquela que o atormenta dia e noite. Para ele o inferno é saber que abandonou um doente à própria sorte; Andew Henry (interpretado por Domhnall Gleeson) é o capitão justo. Chega a titubear em um momento. Provavelmente o suicídio seria para Hugh Glass uma ótima opção. É óbvio, porém, que nem isso ele poderia fazer sozinho. A justiça pondera entre a eutanásia e o deixar viver. Seria pois justo deixar um homem que sequer pode comer independente de alguém e que sofre de dores alucinantes "viver" nesse sofrimento? Não seria amoroso e misericordioso deixá-lo partir? Sobre esse tema Giorgio Agamben, em seu HOMO SACER, o poder soberano e a vida nua I, levanta a seguinte questão:
"O conceito de 'vida indigna de ser vivida' é, para Binding, essencial, porque lhe permite encontrar uma resposta ao quesito jurídico que pretende colocar: 'a impunidade do aniquilamento da vida deve  permanecer limitada, como o é no direito atual (feita exceção para o estado de necessidade), ao suicídio, ou de fato deve ser estendida à morte de terceiros?' A solução do problema depende na verdade, segundo Binding, da resposta que se dá à pergunta: 'existem vidas humanas que perderam a tal ponto a qualidade de bem jurídico, que a sua continuidade, tanto para o portador da vida como para a sociedade, perdeu permanentemente todo o valor?'"[10]
     O capitão Andrew Henry pondera e responde negativamente a pergunta sucitada por Binding. O capitão opta pela continuidade da vida. Sabemos que os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que queremos dizer com  a palavra vida. serviam-se de dois termos: Zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e Bíos que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo. Em um trecho da Política (1278b, 31) Aristóteles exprime com insuperável lucidez esta consciência: "(...) é evidente que a maior parte dos homens suporta muitos sofrimentos e se apega à vida (Zoé), como se nela houvesse uma espécie de serenidade e uma doçura natural"[11] Andrew Henry entende que por mais sofrimento que Hugh Glass esteja passando ele se apega a vida simplesmente pelo fato de ainda respirar e enxergar. Não é a toa que no momento de dúvida, Henry pede para que cubram os olhos de Glass pois o próprio capitão poria fim ao seu sofrimento. Mas, seu conceito de vida, senso de justiça e intervenções do filho de Glass o impedem.
     Por fim temos o egoísta e indiferente John Fitzgearld (interpretado por Tom Hardy). Este por sua vez responde afirmativamente a pergunta de Karl Binding. Sim, há vida que não se merece viver. Perderam o valor. vidas indignas de se viver. Sabemos que Karl Binding foi um dos autores da plaquette cinza-azulada que leva o seguinte título: Die Freigabe der Vernichtung lebensunwerten Lebens (A autorização do aniquilamento da vida indigna de ser vivida). Fitzgerald se auto intitula capaz de pôr fim a vida indigna de ser vivida de Glass. Mesmo que Fitzgerald pareça se importar com o sofrimento do moribundo, não é bem isso que fica evidente. Fitzgerald considera Glass um peso morto que, caso haja um ataque dos Aricaras, o doente será um estorvo colocando toda a equipe em perigo. Se há uma vida que merece viver é a sua, não a de um doente desgraçado. Por duas vezes vemos que Glass escreve na rocha "Fitzgerald matou meu filho." Em outras palavras "E eu vou matá-lo por isso", ou "Fitzgerald, seu filho de uma mãe eu estou chegando".
     Em seu livro Inferno, Strindberg escreve no final: "Eis aí, meus irmãos, o destino de um homem entre tantos outros, e concordai que a vida de um homem pode apresentar-se como uma grande pilhéria!"[12] É bem assim que vejo a biografia de Hugh Glass. Chega a ser cômico tanto sofrimento na vida de um só ser. É uma grande pilhéria, ou será uma divina tragédia?
Por fim, deixo como dica o magnífico filme O Regresso.



Notas
[1]  Deixai toda esperança, vós que entrais (canto III,6)- ALIGHIERI, Dante. A Divina comédia. introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura - São Paulo. Ed Landmark, 2005.
[2] Um dia, sentei a Beleza no meu colo. Achei-a amarga. E injuriei-a. (pág 11) RIMBAUD, Arthur. Uma estadia no inferno. Tradução Ivo Barroso. - [Edição especial] - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
[3] omelete.uol.com.br/filmes acessado em 14/02/2016.
[4] Idém
[5] BORNE, Étienne. O problema do mal (pág 24). São Paulo: É Realizações, 2014.
[6] Tortura sutil, inepta; fonte de minhas divagações espirituais. (pág 59) RIMBAUD, Arthur. Uma estadia no inferno. Tradução Ivo Barroso. - [Edição especial] - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
[7] Catedral (Tanika Tikaram/ letra em português: Christiaan Oyens/ Zélia Duncan) cd Zélia Duncan, sortimento vivo. Universal music.
[8] I Co 3.16 Bíblia de Jerusalém. Ed Paulus 3ª impressão, 2004.
[9] Rm 12.19 Bíblia de Jerusalém. Ed Paulus 3ª impressão, 2004.
[10] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua I (pág 133) Belo Horizonte. Ed UFMG, 2012.
[11] Idém pág 09.
[12] STRINDBERG, Johan August. Inferno. Tradução Ivo Barroso. - São Paulo: Hedra, 2010.


* Erivan Silva é teólogo, licenciado em história. Atualmente cursa filosofia na Unifai e escreve periodicamente no seu blog
erivan.j82@blogspot.com





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