segunda-feira, 30 de maio de 2016

A cerimônia do adeus*



"O mundo corre sobre as cordas do coração sofredor, compondo a música da tristeza"
Tagore


"É o que afoga nosso coração em lágrimas, e faz com que a perda da vida daqueles que morrem se torne a morte daqueles que ficam vivos."
Santo Agostinho


Eu sou daqueles que se permite à tristeza. Respeito meu momento de luto. Me preocupa, é verdade, o fato de quase sempre eu ficar assim melancólico, depressivo, a pensar na morte - minha e dos outros -.  É que aqueles que conheço estão sendo tirados da minha vida muito cedo. E de forma trágica. Não cabe detalhes aqui, apenas tristeza cristalizada. O que eu faço com a melancolia? A transformo em força intelectual; penso, reflito sobre ela, escrevo sobre ela. Assim fazem os poetas. É uma forma de atenuar a saudade. Atenuar, não matar. 

A [essa] evocação mortífera da saudade - "morri de saudade" - responde a tentativa de acabar com ela - "vou matar a saudade" - , a primeira diz da falta, enquanto a segunda pretende suspender a sua presença. Mas ninguém morre de saudade (...) A saudade não mata, ela mantém vivo quem sofre dela, ela instala no sujeito em seu tempo de origem e destino, ela assegura tanto os limites quanto os sonhos e a imaginação. E também ninguém mata a saudade, mas toda tentativa de acabar com ela a renova, instaura-a de novo. Afinal, "morrer de saudade" é dizer desse doce sofrimento que ela inflige, e "matar a saudade" é tentar se livrar dela para a ela melhor se entregar.   [1]

Nem se mata a saudade nem se morre de saudade, mas que se sofre disso não tenha dúvidas. Não há conformidade na ausência.


Não me resigno quando depositam corações amorosos na terra dura.
É assim, assim será para sempre:
entram na escuridão os sábios e os encantadores.
Coroados de lírios e louros, lá se vão:
mas eu não me conformo.

Na treva da tumba lá se vão, com seu olhar sincero, o riso, o amor;
vão docemente os belos, os ternos, os bondosos;
vão-se tranquilamente os inteligentes, os engraçados, os bravos.

Eu sei.
Mas não aprovo.
E não me conformo.

Edna St. Vincent Millay.



Ontem faleceu (mais) um camarada vítima de tiros. Hoje recebi a notícia. Só lamento pela família. A morte é necessária não apenas um acontecimento possível; para o homem a morte tem gravidade absoluta; a morte pode ocorrer em qualquer momento sem aviso prévio. 

Neste blog há algumas singelas homenagens aos amigos e familiares que partiram. Cada vez que alguém muito próximo se vai é impossível não se perguntar: serei eu o próximo?

Qual será a forma da minha morte?
Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida.
Existem tantas... Um acidente de carro.
O coração que se recusa abater no próximo minuto,
A anestesia mal aplicada,
A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe,
Um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio...
Oh morte, tu que és tão forte,
Que matas o gato, o rato e o homem.
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem,
Nos meus filhos, na palavra rude
Que eu disse para alguém que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber aquela noite...
Raul Seixas - Canto para minha morte
Enquanto ela não vem me resta sofrer de saudade, me entregar - não por inteiro - à melancolia, ler alguns livros, escrever um poema talvez...
olhar pela janela.
Veja, está chovendo.
Um dia muito triste para um velório.
Maldita seja a cerimônia do adeus o momento da despedida final.

Descanse em paz amigo.

Rafael Gilio Santana















*Eu tomei este título do livro com o mesmo nome que a Simone de Beauvoir escreveu sobre a morte de Jean-Paul Sartre.

[1] JESUS, Samuel de. SAUDADE, da poesia medieval à fotografia contemporânea. Autêntica, 2015

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