sexta-feira, 24 de junho de 2016

Epiphania na Casa dos Budas ditosos - erotismo e redenção

"como tinha razão o Nelson Rodrigues: se todo mundo soubesse da vida sexual de todo mundo, ninguém se dava com ninguém"
- A Casa dos Budas ditosos, pág 52


Enquanto tu morrias eu te abraçava numa fúria alagada, numa sórdida doçura, minha alma era tua? o desejo era demasiado para a carne, que grande fogo vivo insuportável, que luz-ferida, que torpe dependência uma outra Hillé sussurrava muito fria e altiva, uma outra Hillé fingindo mansidão e langor, roliça, passiva, perla sobre o fastídio de los mármores.
Me queres?
Claro."
                                                            - A obscena Senhora D., pág 54

SONNETO DO COITO NA PENUMBRA [1627]
Em pleno "frango assado" está o casal
A xota, penetrada, se arreganha.
O pau, indo e voltando, dá signal
de que ja vae gozar onde se banha...
- Poesia Vaginal, pág 67




Eu sou daqueles que dizem que leitura erótica é essencial. Leiamos as ficções, as aventuras e o velho maniqueísmo como pano de fundo de toda história de herói. Mas jamais nos esqueçamos da nossa humanidade, dotada de sexualidade, de fantasias sexuais, de desejos ocultos que a ninguém revela. Confesso que a literatura erótica só me atraiu de uns poucos anos para cá. Até então, como todo garoto, o conformismo era uma revista Playboy; hoje, nada mais vulgar. Não, eu gosto da cena, das palavras, da imagem que criamos só para nós fazendo sexo com livros...

Lembra do Leoni?

Noite e dia se completam, no nosso amor  ódio eterno
Eu te imagino, eu te conserto, eu faço a cena que eu quiser
Eu tiro a roupa pra você, minha maior ficção de amor
Eu te recriei, só pro meu prazer

É disso que estou falando: erotismo sem vulgarização; sedução sem canalhice. Essa literatura é rara mas pode ser encontrada.
Octávio Paz resume sua "geometria passional" com as seguintes palavras: "O sexo é a raiz, o erotismo é tronco, e o amor é a flor". Seguindo o raciocínio do Octávio Paz, Gabriel Liiceanu, no seu livro Da sedução diz:

(...) Octavio Paz criou, como ele mesmo chama, uma "geometria passional". Compartilhamos, seguramente, com uma parte do mundo vivo - e esta é a base onde se assenta a "geometria passional" - a sexualidade. Mas ao lado deste fenômeno, que é "o mais antigo, o mais vasto e essencial", e, igualmente, "a fonte primordial", existem outros dois fenômenos que são "formas derivadas do instinto sexual - cristalizações, sublimações, perversões e condensações que transformam a sexualidade e, muitas vezes, a fazem irreconhecível." Esses dois fenômenos, que não podem ser encontrados senão no homem., são o erotismo e o amor. (...) O erotismo é a sexualidade domesticada no nível da espécie humana. (...) Já que é "flecha atirada ao transcendente", o erotismo encontra o ideal e pode evoluir igualmente bem para a castidade ou para a libertinagem. (...) o amor, representa a focalização extrema da sexualidade, o seu ponto mais afiado, o lugar em que o sexo se encarna, como unidade inconfundível de carne e espírito, na personalização suprema. Ao contrário do erotismo, cujo o objeto pode demorar-se no espaço da in-diferença (qualquer indivíduo, no espaço sexual, pode ser substituído por outro), o amor junta a passionalidade numa pessoa única objeto erótico único nascido no encontro entre predestinação e livre-arbítrio. Ambos eram predestinados um ao outro desde o começo dos tempos e, igualmente, se escolhem livremente. (1)

Eu acho que em literatura erótica encontramos esses dois fenômenos, isto é, erotismo e amor. Eles se confundem inclusive etimologicamente; pode-se dizer que amor enquanto desejo do objeto amado é erótico; e o erótico é amor desejante. A ontologia do amor leva a declaração básica de que o amor é único (2) mesmo que seja entendido em caráter modal como ágape, philia ou eros. Há ainda quem queira depreciá-lo somente ao nível da epithymia (desejo) isso em conotações sensuais. Ora, mesmo encarado pelos moralistas de plantão ainda assim estamos falando de amor, amor indivisível em sua ontologia. O amor é a liberdade e o seu avesso. O desejo sexual humano não pode ser transferido. A pessoa que deseja Jane, é absurdo perguntar  "porque não Elizabeth? Ela também serve". Afinal, o que ele quer é uma ação da qual Jane é constituinte e não só um instrumento. É verdade que Elizabeth poderia ser trocada por Jane, como Lia foi trocada por Raquel na história do casamento de Jacó no Antigo Testamento (Gn 29.21-28). Mas o desejo de Jacó não foi transferido para Lia. (3) desejo não se transfere; sensualidade, erotismo, nada disso é transferível.

Agora, falando de A Casa das budas ditosos, por que epiphania? Porque foi a palavra que encontrei para descrever minha sensação ante a leitura do livro. Do ponto de vista filosófico epiphania significa uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas. Ou seja, a sensação de considerar algo como solucionado, esclarecido ou completo. (lit. manifestação de algo).
De antemão já adianto ao leitor que é impossível não se encantar pela história (real ou imaginária) narrada pelo João Ubaldo Ribeiro. Se encantar e se excitar. É bem provável que o livro será lido de "pau duro" ou de "grelo molhado". Duvida? Faça você mesmo o teste. Melhor ainda, vou reproduzir apenas um trecho do livro para que leiamos juntos. Antes disso quero lembrar ao leitor que nossa confessante tem dois interesses em mente:

1) Que todos olhem pelo "buraco da fechadura". Assim desperta um fetichismo sexual nos leitores. Numa citação de Sartre (não lembro onde) li: "acariciar com os olhos e desejar são uma única e mesma coisa". Na música interpretada pela Maria GaduEle me comia com aqueles olhos de comer fotografia, eu disse X*. Comer com os olhos, acariciar com os olhos. Nossa personagem nos garante que no quesito safadeza todos somos iguais. (...) as pessoas leem romances, biografias, confissões e memórias porque querem saber se as outras pessoas são como elas. Não somente por isso, mas muito por isso. Querem saber se aquilo de vergonhoso que sentem é também sentido por outros, querem olhar mesmo pelo buraco da fechadura e, quanto mais olham, mais precisam olhar, nunca estarão saciadas. Faz bem, é reconfortante. Porque eu tenho a convicção de que a maior parte das mulheres e homens é como eu e pensa que não, cada um pensa que é único em suas maluquices. Não é, não, somos todos iguais. (pág 130)

2) "A segunda [intenção] é provocar tesão, quero que quem me ler fique com vontade de fazer sacanagem, pelo menos se masturbando". (pág 131)

Vamos à leitura propriamente dita:

(...) pôs a mão no meu ombro e disse "como vai você?".
- Vou bem, vou bem. Vou nervosa.
- Nervosa?
- O que é que você acha? Minhas pernas estão tremendo.



Estavam mesmo e ele ainda demorou para fazer alguma coisa além de botar a mão no meu ombro, até que finalmente desencantou e, agarrados mesmo, fomos para o quarto que dava porta para o corredor e onde Claude tinha sua cama de casal para receber rapazes, um quarto penumbroso dentro de uma floresta de quadros, esculturas e bibelôs, com parte do teto e uma parede cobertas por espelhos. Sentamos na cama olhando fixo um no outro, eu fazendo minha melhor cara de corça no cio alcançada pelo macho, sem nem precisar muito, porque estava mesmo fora de mim de tesão. Ele me desabotoou a blusa, eu o ajudei a tirá-la, com um sorriso leve, sem mostrar os dentes e baixando os olhos. Ele me beijou bem, já tinha aprendido comigo.  E pôs a mão no facho do meu sutiã, novidade tecnológica na época, um americano que Norman Lúcia me trouxe de presente, do tipo que soltava com uma pressãozinha dos dedos. Meus dois peitos pularam livres, trêfegos e lindos como luas cheias, as aréolas rosadas quase apontando para o alto, os bicos tensamente enrijecidos, as curvas delicadas se desdobrando em mil outras sem cessar, e ele enfiou o rosto no meio deles. Não sei como, logo estávamos nus e deitados juntos e resolvi que ficaria o mais quieta possível na cama e só me mexeria em caso de emergência, para evitar uma barbeiragem mais grave, enquanto ele descia a boca dos meus peitos para o umbigo e finalmente lá embaixo, que foi quando eu não me controlei e segurei a cabeça dele entre minhas pernas e gozei tão profundamente que achei que ia morrer. Quando parei de gozar, pensei que ele ia querer que eu  o chupasse também um pouco, e eu estava com vontade, mas, mal resvalei os lábios no pau dele, ele recuou os  quadris, ficou de joelhos diante de mim e me disse, encantadorissimamente, machissimamente no melhor sentido:



- Abra as pernas para mim.
Eu abri, ele curvou meus joelhos para cima, afastou minhas coxas ainda mais - ai, que momento lindo! - , encostou a glande  bem no lugar certo, agarrou meus ombros com os braços em gancho pelas minhas costas, abriu a boca para me beijar com a língua enroscada na minha e, num movimento único e poderoso, se enfiou em mim. Senti uma dor fina e quase um estalo, cheguei a querer deslizar de costas pelo colchão acima, mas ele somente enfiou-se em mim até o cabo e ficou lá dentro parado, me segurando forte, para só então terminar o beijo, erguer o tronco e começar a me foder, olhando para a minha cara. E então, com a expressão de homem mais bonita que já vi na minha vida e exalando um cheiro para sempre irreproduzível, gozou muito fundo dentro de mim e eu senti, senti mesmo, aquele jato me inundar gloriosamente aos borbotões, aquela pica grossa e macia pulsando ereta dentro de mim, ai! Eu não gozei, mas só tecnicamente, porque de outra forma gozei muito naquele momento, não posso descrever minha felicidade, minha profusão de sentimentos, me sentir mulher, me sentir fodida, me orgulhar de ter sido esporrada em meio a meu sangue, sem fricotes, como uma verdadeira fêmea deve ser inaugurada por um verdadeiro macho. Já li muitos livros eróticos e pornográficos,a maior parte detestável, já vi tudo, mas nada pode espelhar aquele instante, nada, nada, nada, nada, até hoje me masturbo pensando naquela hora, minha fantasia perfeitamente realizada. (4)

Confesse caro(a) leitor(a) é uma leitura fantástica não? É aproveitável alguma coisa em tipos de leitura como esta? Sim. Primeiramente a sutileza do autor nos deixa com uma incógnita: a mulher que tem 68 anos de idade (quando narra o ocorrido quando era jovem) e se apresenta apenas com as iniciais C.L.B é real ou fictícia? Ela (?) mesmo responde (...) é irresistível deixar as pessoas sem saber no que acreditar. Ainda encontrei três máximas com o livro:

1. É muito difícil encontrar alguém que não tenha alguma grande obsessão sexual, ou mais comumente, várias, geralmente reprimidas das formas mais inesperadas.

2. É muito difícil encontrar alguém que não se possa seduzir (...) É possível seduzir toda e qualquer pessoa.

3. Ninguém é alguma coisa de forma absoluta. Homem e mulher são construções históricas.

Levaria um certo tempo abordar cada um desses pontos, e serão abordados separadamente em outra publicação ou numa atualização desse mesmo texto por mim escrito. Como uma primeira proposta creio que até aqui está bom. Agora evoco e deixo como dica a Diva Hilda Hilst (1930-2004). H.H é reconhecida como um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea. Em uma entrevista em que foi interrogada da seguinte forma: Para escrever sobre sexo o escritor necessita de uma vida sexual extremamente variada? Hilst responde: Eu acho que não, porque o poeta não precisa passar pela morte ou por um montão de cadáveres para falar sobre ela. Você já tem um conhecimento da coisa, não precisa viver tudo para escrever. No meu caso específico, tive todas as alegrias sexuais possíveis.(5)

É na literatura erótica que tenho essa manifestação (epiphania) do humano, na nudez encontro a redenção da sensualidade. Nudez em nossa cultura tem assinatura teológica nos dirá Agamben (6) Não gosto das filosofias que desprezam o corpo. "Em geral, o erro da filosofia é se afastar da vida" (7) e isso inclui afastar-se do próprio ser integral. "Detrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um amo mais poderoso, um guia desconhecido, que se chama 'o próprio ser'. Habita em teu corpo; é teu corpo" (8) Eu tenho um corpo erótico e uma alma amante/desejante. São os dois fenômenos que nos fala Octávio Paz. Eles se encontram em mim. Sou erotizado e redimido seja nos traços de Milo Manara (9) seja no HQ da vida real de Chester Brown (10), na leitura de Bukowiski, na perversão de Hilda Hilst, na Vênus de quinze anos de  Swinburne (11) ou em Anna P.(12)... O importante é ser humano, demasiado humano.

Sexo é brinquedo 
Amar é brincar. Não leva a nada. Não é para levar a nada. Quem brinca já chegou. Fazer amor com uma mulher ou com um homem é brincar com seu corpo. Cada amante é brinquedo brincante. "Creio na ressurreição do corpo": não é a esperança de um milagre escatológico no fim dos tempos. É uma possibilidade de cada dia. Os sentidos precisam sair do túmulo onde os deveres os enterraram. (...) corpo brincante: é nele que acontece a alegria! (13)

* A História de Lili Braun - Música composta por Chico Buarque e Edu Lobo. 


Notas

(1) LIICEANU, Gabriel. Da Sedução. São Paulo. Ed Vide Editorial, 2015 pág 73-75.

(2) TILLICH, Paul. Amor, poder e justiça. São Paulo. Fonte Editorial, 2004. pág 37.

(3) SCRUTON, Roger. Rosto de Deus, o. São Paulo Ed É Realizações, 2012. pág 137.

(4) RIBEIRO, João Ubaldo. Casa dos Budas ditosos, A. Rio de Janeiro Ed Objetiva 1999. Pág 77-79.

(5) DINIZ, Cristiano (org). Fico besta quando me entendem - entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo Ed Biblioteca Azul, 2013. pág 141.

(6) AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Belo Horizonte Ed Autêntica 2014. pág 91. Nas palavras de Agamben "A nudez, é inseparável de uma assinatura teológica. Todos conhecem a narrativa do Gênesis segundo a qual  Adão e Eva, após o pecado, percebem pela primeira vez estarem nus" (...)

(7) BATAILLE, Georges. Erotismo, O. Belo Horizonte Ed Autêntica 2013. pág 36.

(8) NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Rio de Janeiro Ed Petrópolis 2008. pág 51.

(9) Milo Manara é um dos maiores desenhistas de Hq sensual do mundo. Alguns desenhos do artista italiano podem ser visto aqui http://papodehomem.com.br/milo-manara-mulheres-e-nanquim/ Manara tem um site oficial http://www.milomanara.it/ cosultados em 24/06/2016 ás 18h42min

(10) Autor do Hq Pagando por sexo, publicado no Brasil pela Ed Martins Fontes

(11) SWINBURNE, Charles. Venus de quinze anos. São Paulo Ed Hedra, 2014.

(12) ANNA P. Tudo que eu pensei mas não falei na noite passada. São Paulo Ed Hedra 2014.

(13) ALVES, Rubem. Ostra feliz não faz pérola.  São Paulo. Ed Planeta, 2008. pág 80.



Ainda foram consultados:

MATTOSO, Glauco. Poesia Vaginal - Cem sonetos sacanas. São Paulo Ed Hedra 2015.
CAROTENUTO, Aldo. Amar trair - quase uma apologia da traição. São Paulo. Ed Paulus 3ª ed 2011.
STOLLER, Robert. Perversão. São Paulo Ed Hedra, 2014.
HILST, Hilda. Com os meus olhos de cão. São Paulo. Ed Biblioteca azul 2001.
HILST, Hilda. Cartas de um sedutor. São Paulo Ed Biblioteca azul, 2014.
HILST, Hilda. Obscena senhora D., A. São Paulo Ed Biblioteca azul, 2016.
MUCHEMBLED, Robert. Orgasmo e o Ocidente, O. São Paulo Ed Martins Fontes, 2007.



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