domingo, 19 de junho de 2016

Morte e suicídio em Bento Espinoza - conceito de caráter naturalista e "homicídio" imaginário


Por Erivan Silva


"Não sou mais aquele, não sou outro,
 sou a poeira da ampulheta virada para baixo,
 depois para cima, uma partícula do meu próprio cosmo que o 
tempo sopra para debaixo desse ciclo, nada mais, 
porque sei que lá atrás outros em mim existiram
 e lá adiante outros se multiplicarão na minha pele 
apesar dessa carcaça que se encolhe, se enruga, 
se transforma desde o ventre e se flagela com o passar dos anos.
 Passa, tempo! Passa logo tuas plumas de pedra no meu rosto 
e encerra essa história com os teus pulsares de silêncio, 
não peço mais do que isso, porque sabes que minha força 
parece derivar justamente do drástico, do derradeiro, do quase abismo." *

"Quando abriu o quarto selo, ouvi o quarto animal exclamar: Vem!
E eu vi: era um cavalo esverdeado.
Quem o montava chama-se "a Morte",
e o Hades o acompanhava." (Ap 6.7-8 TEB)



A morte é a grande muságete(1) da filosofia. Sua inspiração. Sua inspiradora. Desde que o humano tem consciência de si e dos demais seres, a morte tem se tornado motivo de preocupação. Afinal  "a morte está em todo lugar" nos dirá Sêneca, e o homem nada mais é do que um ser para (ou diante da) a morte, morte daqueles que o cercam bem como de sua própria morte.

Pode-se dizer que a morte foi preocupação onipresente em todos - ou quase todos - os filósofos. Ela é combustível de angústia para uns, escape ou porta de entrada para outra existência, ou ainda: um sono sem sonhos, i. é, um tipo de existência, visto que é matéria, sem consciência, para outros. Tal como no filme O Sétimo Selo(2) por mais que as personagens fujam da morte é ela a grande vitoriosa ao final de tudo. É ela quem os arrasta para o "Hades".
A casuística da morte parece interessante, comovente; razoável e inspiradora; clara e ao mesmo tempo cheia de mistérios insondáveis. É a atração pelo trágico.
Durante toda a Idade Média a morte esteve na ofensiva. Fazia parte do imaginário popular a ideia de uma vida post mortem. A invenção do paraíso e seu oposto, no caso inferno/purgatório surgiram nesse período (ou pelo menos recebeu a configuração tal como o conhecemos). Guerras civis e religiosas bem como as doenças ceifaram milhares de vidas. A morte era de fato um dos medos mais horríveis do período medieval; era onipotente e onipresente. Era o quarto cavaleiro do Apocalipse a quem chamam "a Morte"(3) 
Não é minha intenção fazer um levantamento sistemático e cronológico de todos aqueles que se debruçaram sobre o tema; não disponho de recurso para tal. De igual modo não tenho interesse em fazer um recorte histórico do período medieval cuja temática seja a morte(4); o que foi dito até aqui foi apenas de caráter introdutório. Tampouco é minha intenção fazer uma reflexão profunda sobre a temática propriamente dita. Primeiramente, não disponho de espaço suficiente e, em segundo lugar, quando analisamos o conceito morte ele se transfigura diante de nossos olhos. E para sermos honestos, para uma abordagem clara seria necessário tratar dos temas nucleares que a morte carrega ("... e o Hades o acompanhava" Ap 6.8). Esse "Hades" que acompanha a morte nada mais é que outros conceitos que lhe são inerentes, a saber: a angústia, o medo, a raiva, a saudade, a fascinação, o mal... Seria necessário de igual modo tratar de uma metafísica da morte, ou teologia da morte que se preocupa com a imortalidade e ressurreição. A essa escatologia individual cabe à teologia uma palavra de consolo, o que não temos a oferecer.
A mim cabe apenas refletir. Da combinação da ideia de morte total e da concepção da morte como evento natural, inato na finitude da vida humana com o saber antecipatório, ainda que indefinido, do ser humano sobre sua morte futura emergiu a tentativa filosófica de interpretar a morte como consumação da existência individual.(5) Desta combinação, morte total e morte como evento natural, abordarei esta última concepção sobretudo a partir da ótica espinoziana. Ainda, em um  segundo momento, abordarei um tema que  em princípio parece controverso no pensamento de Espinoza: o suicídio. Aqui reside a maior dificuldade pois segundo o autor da Ética:

"A mente, quer enquanto tem ideias claras
e distintas, quer enquanto tem ideias confusas,
esforça-se por perseverar em seu ser por uma
duração indefinida, e está consciente desse seu
esforço" (E 3,9)

Em outras palavras, Espinoza utiliza aqui aquilo que ele chama de conatus, i. é, o esforço que cada componente da Natureza faz para conservar sua existência. No homem, esse esforço vai das necessidades mais básicas, como comer, beber, dormir e abrigar-se, às mais elaboradas, como produzir cultura. Nesse sentido, o homem não "escolhe" manter-se vivo. Ele é  levado, pelo conatus, a agir para isso. Dito isto, a problemática está posta: Se o conatus é o esforço de conservar a própria existência porque alguns (e não poucos) cometem suicídio? Esta pergunta será abordada em um segundo momento.

O conceito de caráter naturalista

A morte não é bela nem feia: a sua beleza ou feiura
é preparada por toda a vida, que, se bela e "boa", faz
belo e bom o ato de morrer. Uma  "boa  morte",   no
sentido mais forte, é "viver" o momento na presença
da vida  inteira  e da  existência integral  com toda a
humanidade da qual o homem faz parte.
- M.F. Sciacca

Benedicto (ou Bento) de Spinoza (1632-1677) viveu em um século marcado por tumulto científico, intelectual, político e religioso que deu origem a muitos "sistemas" filosóficos. Embora tenha participado animadamente desses impasses intelectuais de sua época, a filosofia, para Espinoza, não era uma arma, mas um modo de vida, uma ordem sagrada cujos servidores eram transportados para uma felicidade suprema e certa.(6) Espinoza foi inovador e bastante original, mesmo sendo de origem judaica reformulou todo o conceito de Deus. Um Deus que até então era tido como transcendente, passa agora a ser visto como imanente; um Deus panteísta, deísta... ou seja, a "força racional e necessária que rege a realidade segundo leis inteligíveis", explica Marilena Chaui. Isso, obviamente causou espanto entre seus pares e lhe custou a expulsão e excomunhão. Ele foi amaldiçoado.

Maldito seja ele de dia, e maldito seja de noite; maldito seja quando deita, e maldito quando levanta; maldito seja quando sai e maldito seja quando retorna, o Senhor não o perdoará; a cólera e a fúria do Senhor se acenderão contra esse homem e trarão sobre ele todas as maldições escritas no livro da Lei; e o Senhor apagará seu nome debaixo do céu; e, por sua má conduta, o afastará das tribos de Israel, com todas as maldições do firmamento escritas no livro da Lei (...) Ordenamos que ninguém se comunique com ele verbalmente ou por escrito, nem lhe faça qualquer favor, nem permaneça a menos  de quatro côvados dele, nem leia qualquer coisa composta ou escrita por ele.

De fato Espinoza foi chamado de sabotador espiritual, subversor das coisas legalmente estabelecidas e um advogado do diabo. Quiçá, mexeu com tabus. Entre esses tabus inclui-se o da morte. O que era a morte para Espinoza?

Primeiramente é preciso entender que para Espinoza "os homens não  são criados, mas somente gerados; os seus corpos existiam antes, embora formados de outro modo". Gerados, isto é, um produto da natureza, da sua própria essência: Cada homem, é assim, um indivíduo estendido; um retalho de tecido, um modo finito do atributo infinito da extensão. O homem enquanto matéria é pré-existente. Em suma, a morte é uma necessidade imanente. Segundo Sciacca "Na existência de duração ou temporal, os indivíduos, partes da natureza, estão sujeitos às vicissitudes do devir, que os modificam incessantemente, e a morte é uma das tantas modificações de suas essências"(7). Aqui temos a sutil diferença entre imortalidade e eternidade. O homem, nessa concepção é eterno, não imortal. Sendo assim, a morte, é apenas algo "natural". É o retorno à Natureza eterna. Michele Federico Sciacca torna mais  claro ao afirmar "aquela que Espinoza chama experiência da minha eternidade é experiência da própria Eternidade naquele 'modo' finito e transeunte  que eu sou. É suficiente unir a ideia do meu corpo àquela de Deus e não a uma causa externa; pôr o meu ser na eternidade divina, enquanto o ser de mim gerado e não criado não existe o ser deste ou daquele homem: existe somente modos contingentes, 'indivíduos extensos', cuja forma varia na infinitude dos atributos, sem que nada suceda na ordem imutável e indiferente da Necessidade. Espinoza afirma que a mente humana não pode ser destruída absolute com o corpo que ela aliquid permanet quod aeternum est, mas para acrescentar em seguida  que se lhe pode atribuir uma duração determinável no tempo, só enquanto exprime a atual existência do corpo". Seguindo essa mesma linha de pensamento, Sciacca prossegue afirmando que: um aliquid impessoal,  que existiu antes de vestir um corpo e existente eternamente depois, sem que isso tenha alguma memória. Aqui a diferença entre vida no tempo e a morte: no tempo, eu existo segundo o modo; depois da morte, de essência não mudada, existo segundo a substância, isto é, na eternidade sem modos e  sem tempo.
Passamos a primeira parte.

"Homicídio" imaginário - Há mesmo suicídio?


Le soleil ni la mort ne se peuvent  regarder en face
Nem o Sol nem a morte podem ser olhados fixamente
- La Rochefoucauld


Vimos que para Espinoza a morte é imanentemente necessária. A morte não é uma punição como pensava Pascal. Espinoza entendia que embora vá ocorrer necessariamente, não faz parte da natureza de uma coisa. Aliás, nem poderia ser diferente, já que toda coisa é entendida como um esforço para perseverar na existência conforme vimos acima no conceito de conatus.

Na proposição 4 da parte 3 da Ética, lemos:

Nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior.
Demonstração. Esta proposição é evidente por si mesma. Pois a definição de uma coisa qualquer afirma a sua essência; ela não a nega. Ou seja, ela põe a sua essência; ela não a retira. Assim, à medida que consideramos apenas a própria coisa e não as causas exteriores, não poderemos encontrar nela nada que possa destruí-la.

Dito de outra maneira, a morte sempre vem de fora. Isso não significa que o esforço poderá sempre superar os obstáculos externos: Espinoza diz que, dada uma coisa, sempre há outra mais potente que pode destruí-la. Por isso, as coisas necessariamente morrem, e, nesse sentido, a morte é natural(8) como vimos acima. "Todavia, a morte só é natural em função da totalidade da Natureza, que abrange muitas coisas nocivas umas às outras, mas não em função da natureza da própria coisa que morre. (Luís César Oliva). Se a morte é algo externo como se explica o fato de que algumas pessoas simplesmente põe fim a própria vida? Se tal coisa é esforço de preservar na existência, e, no caso do ser humano, desejo de viver, como pode dar-se que alguns homens se suicidem? A Ética nos responde no escólio 20 da parte 4:

Escólio. Ninguém, portanto, a não ser que seja dominado por causas exteriores e contrárias à sua natureza, descuida-se de desejar o que lhe é útil, ou seja, de conservar o seu ser. Quero com isso, dizer que não é pela necessidade de sua natureza, mas  coagido por causas exteriores, que alguém se  recusa a se alimentar ou se suicida, o que pode ocorrer de muitas maneiras.

A partir de então, Espinoza cita três exemplos de suicídios como causas externas. O primeiro exemplo soa bem estranho a ouvidos contemporâneos e, não seria exatamente um suicídio. Trata-se do caso em que alguém torce o braço de outra pessoa e faz com esta, que segura uma espada, vire-a contra seu próprio peito. O segundo exemplo, Espinoza toma Sêneca como modelo, é aquele que é obrigado a se matar; no caso de Sêneca ele foi coagido por Nero César a cortar os próprios pulsos. "Ou se é obrigado, como Sêneca, pelo mandato de um tirano, a abrir as próprias veias, por desejar evitar, por meio de um  mal menor, um mal maior" (E 4,20 escólio). 
O terceiro exemplo, sendo o mais complexo  dos três, exige um pouco mais de atenção do leitor. No escólio citado, Espinoza diz: "Ou, enfim, porque causas exteriores ocultas dispõe sua imaginação e afetam seu corpo de tal maneira que este assume uma segunda natureza, contrária à primeira, natureza cuja ideia não pode existir na mente". Ainda na proposição 10 da P 3, lemos:

Uma ideia que exclui a existência de nosso corpo não pode existir em nossa mente, mas lhe é contrária.(9)

Dessa forma causas externas podem ser de tal maneira absorvidas pela imaginação, que passamos a crer que somos uma coisa diferente do que somos, e mesmo contrária ao que de fato somos. Segundo Luís César Oliva:

Essa imagem de nós mesmos pode apresentar-nos, por exemplo, como perversos, fracos, como empecilhos para a realização de nosso verdadeiro eu, que cremos ser grandioso e brilhante. Como as duas imagens são conflitantes, podemos ser levados a destruir uma delas, a matar nosso falso eu, que ameaça o outro, e com isso chegamos à autodestruição. Para a imaginação, porém, o homem não mata a si mesmo, mas a um outro que o retinha e consumia; matá-lo, para a imaginação, é lutar a fim de preservar no ser o "eu verdadeiro", ou seja, mata-se sempre ao outro, nunca a si mesmo.(10)

Vemos, desse modo, que a morte vem de fora i. é, da imaginação que para Espinoza é um tipo de conhecimento pelo qual somos totalmente determinados mesmo crendo que estamos agindo espontaneamente. 

Sendo assim, não estamos falando de suicídio, mas de "homicídio" pois imaginariamente mata-se um outro que habita em nós. A única coisa que se possa falar sobre o suicídio é que é a prova cabal de que existe coisas na vida piores do que a morte. E essas "coisas" pedem estar somente em nosso imaginário.





NOTAS

*Personagem Ardenas Onírio do livro FÁBULAS DA FEBRE - Carlos Tavares de Melo

(1) Muságeta: na verdade, aquele que conduz as musas; amigo e protetor das musas, das ciências, das artes. Apelido de Apolo e Hércules. Esse termo é utilizado por Arthur Schopenhauer num ensaio organizado por Ernest Ziegler  SOBRE A MORTE, pensamentos e conclusões sobre as últimas coisas. São Paulo. Ed Martins Fontes 2013.

(2) Relançamento 23 de julho de 2015
Data de lançamento 27 de julho de 1959 (1h 36min)
Direção: 
Gêneros DramaFantasia
Nacionalidade Suécia
Breve sinopse: Após dez anos, um cavaleiro (Max Von Sydow) retorna das Cruzadas e encontra o país devastado pela peste negra. Sua fé em Deus é sensivelmente abalada e enquanto reflete sobre o significado da vida, a Morte (Bengt Ekerot) surge à sua frente querendo levá-lo, pois chegou sua hora. Objetivando ganhar tempo, convida-a para um jogo de xadrez que decidirá se ele parte com a Morte ou não. Tudo depende da sua vitória no jogo e a Morte concorda com o desafio, já que não perde nunca.
Vide ainda: http://erivan82.blogspot.com.br/2015/09/o-setimo-selo-o-jogo-da-morte.html
(3) Nesta citação utilizo a Bíblia Tradução Ecumência - TEB. Edições Loyola. Tradução vinda do francês La Bible - traduction aecuménique de la Bible

(4) Caso o leitor se interesse pelo tema da morte no período medieval recomendo como leitura o excelente livro do historiador Philippe Ariès O HOMEM DIANTE DA MORTE São Paulo. Ed UNESP 2013.
Ainda o excelente tratado de Johan Huizinga O OUTONO DA IDADE MÉDIA. São Paulo Ed CosacNaify. Sbretudo o capítulo 11 A imagem da morte pág 221.

(5) Vide PANNENBERG, Wolfhart - TEOLOGIA SISTEMÁTICA tomo 3 pág 730. São Paulo. Ed Paulus 2009.

(6) SCRUTON, Roger. Espinoza São Paulo. Ed Loyola 1996. pág 11

(7) SCIACCA, Michele Federico. Morte e imortalidade. São Paulo. Ed É Realizações 2011 pág 46.

(8) OLIVA, Luís César. Existência e a morte, A. São Paulo. Ed Martins Fontes 2012 pág 49

(9) Vide ainda E, P 3 prop. 5; corol. da prop. 9 da P. 2; prop 11 e 13 da P. 2. Nessa citações eu utilizei a Ética publicada pela editora Autêntica edição de 2009. trad Tomaz Tadeu.

(10) OLIVA, Luís César. Existência e a morte, A. São Paulo. Ed Martins Fontes 2012 pág 53.

Bibliografia básica
SCIACCA, Michele Federico. Morte e imortalidade. São Paulo. Ed É Realizações 2011 
OLIVA, Luís César. Existência e a morte, A. São Paulo. Ed Martins Fontes 2012


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