segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Zaratustra e Hal-9000: Uma breve reflexão nietzscheana sobre 2001, uma odisseia no espaço

Zaratustra e Hal-9000: uma breve reflexão nietzscheana sobre 2001 uma odisseia no espaço

Por Erivan Silva*
O que os leitores devem saber antes? Espero que os leitores tenham assistido 2001: uma odisseia no espaço antes da leitura do texto que se segue; espero ainda que os leitores tenham um conhecimento ainda que básico dos principais conceitos nietzscheanos sobretudo: apolíneo e dionisíaco, eterno retorno e Além-do-homem. Não escrevi esse texto tendo em mente um público alvo nem tampouco primei pelo caráter didático ou introdutório. Se parecer didático não foi intencional. Escrevi para cristalizar minhas impressões particulares sobre a influência do pensamento nietzscheano no filme de Kubrick. Pode ser que o leitor não veja relação alguma, mas isso não me importa.
Primeiramente acho justo lembrar ao leitor que o texto que se segue trata-se apenas de uma reflexão particular; de um ponto de vista entre tantos outros. Não é minha intenção aqui fazer uma interpretação objetiva do longa. Ora, nem o próprio Kubrick nem seu co-autor Arthur C. Clarke tinham essa intenção. É do nosso conhecimento que Clarke teria dito que quem entendesse o filme de primeira ele (juntamente com Kubrick) teriam falhado. Em segundo lugar, não tenho a mínima intenção de explicar o filme cena-a-cena àqueles que por um motivo ou outro não entenderam (Eu mesmo não tenho certeza se entendi. Espero que o leitor assista o filme e tire suas próprias conclusões). Meu objetivo é simplesmente refletir a partir de uma leitura nietzscheana. Essa leitura não é certa nem errada é apenas uma leitura subjetiva vista sob a ótica conceitual de Nietzsche, sobretudo do seu livro Assim falava Zaratustra.
O longa 2001: uma odisseia no espaço, teve sua estreia em 29 de abril de 1968 e até hoje continua encantando pessoas no mundo inteiro. Não é apenas um filme, é uma obra de arte. Cada imagem é uma fotografia em movimento, cada som uma sinfonia rigorosa. Foi uma das sinfonias do filme que despertou meu interesse inicial, a saber: Also sprach Zarathustra de Richard Strauss. O filme começa e termina com esse poema sinfônico, mais especificamente em sua primeira estrutura: einleitung (introdução), ou o nascer do Sol. Entre o início e o fim do filme uma série de conceitos nietzscheanos ficaram explícitos. Como exemplo: o apolíneo e o dionísiaco, o eterno retorno do mesmo, o além-homem, a vontade de potência, o lugar que a solidão ocupa em todo filme... Isso sem falar do caráter perspectivista e ruminante da obra. Segundo a filósofa Scarlett Marton, Nietzsche quer ser lido de uma forma: "Lentamente, com cuidado e consideração. Do leitor ideal espera coragem e curiosidade; exige uma leitura compromissada"[1]. Se Zaratustra é o alter-ego de Nietzsche, um certo "Nietzsche" é o alter-ego de Kubrick. Quem acha que pode assistir Kubrick de forma apressada, sem cuidado ou consideração, perde o seu tempo e certamente adjetivará 2001 como chato, cansativo, sem graça... Sobre o caráter perspectivista, ou olhares múltiplos sobre "X", afirmamos tal qual Deleuze-Guattri que a tarefa da filosofia é formar, inventar, fabricar conceitos. Seguindo a mesma linha de pensamento que os filósofos franceses, Marton escreve: "Aspectos do pensar, filosofia, ciência e arte distinguem-se, mas abrigam elementos e funções análogas. No plano da imanência da filosofia, existem conceitos e personagens conceituais, forma do conceito; no plano de referência ou de coordenação da ciência, funções e observações parciais, função do conhecimento; no plano de composição da arte, sensações e figuras estéticas, força da sensação. Planos irredutíveis, filosofia, arte e ciência têm em comum o fato de mergulhar no caos e dele trazer variações conceituais, variedades sensíveis e variáveis funcionais." [2]. Tanto a obra literária de Nietzsche quanto a obra cinematográfica de Kubrick evocam essas variáveis (conceituais, sensíveis e funcionais). Em 2001: uma odeisseia no espaço, filosofia, ciência e arte se encontram harmoniosamente. O crítico de cinema Michel Ciment diz que 2001 é uma "sinfonia musical", e ainda: "Tanto o poema sinfônico de Richard Strauss quanto o filme de Kubrick, outro poema sinfônico, são uma ilustração da visão nietzscheana. Eles repercutem seu eco em uma recriação artística perfeitamente autônoma. 2001 propõe a mesma progressão que há em Nietzsche, a passagem do macaco ao homem e depois do homem ao super-homem"[3]. No prólogo de Zaratustra Nietzsche escreve: "Que é o símio (macaco) para o homem? Uma irrisão ou uma dolorosa vergonha. Pois tal deve ser o homem para o Além-Homem: uma irrisão ou uma vergonha. (...) o homem é ainda mais símio que todos os símios" [4]. Há ainda uma analogia entre Das três transmutações e a linearidade do filme. "Três metamorfoses do espírito vos menciono: de como o espírito se muda em camelo, e em leão o camelo, e em criança, finalmente, o leão" [5]. Esta tripartição pode muito bem ser aplicada ao filme, sendo: o camelo, o período da aurora da humanidade onde o fardo da existência começa a pesar em suas costas (em 2001 os símios ainda não são totalmente bípedes); o leão, compreende o período em que o homem já domina a técnica, é senhor do seu mundo e almeja ir além do planeta de origem. É um caçador; por fim, temos a criança, que aparece literalmente no final do filme. "A figura da criança remeteria assim a esse momento em que o pensamento, agora lúdico, não se ocuparia mais com ajustes de contas ou refutações nem mais visaria a atingir objetivos ou a cumprir finalidades"[6]. "O feto que aparece no fim e forma como que um segundo globo diante da terra, esse novo ser às portas de uma nova aurora, é a expressão de um eterno retorno"[7].
"A doutrina do eterno retorno do mesmo é tradicionalmente interpretada de duas maneiras, a saber: 1) como uma tese cosmológica que postula um movimento eterno e cíclico para o universo; 2) como uma espécie de imperativo ético que sugere a seguinte exortação: viva cada momento, de tal forma, como se esse momento fosse se repetir infinitas vezes"[8] Este último nos lembra o imperativo categórico de Kant. "Houve quem defendesse haver uma semelhança profunda entre o eterno retorno e o imperativo categórico" (...) Houve ainda quem julgasse que, enquanto Kant estendia a ação em latitude, fazendo-a propagar-se numa repetição ilimitada nos membros da sociedade, Nietzsche a ampliava em longitude, fazendo-a repetir-se numa sucessão infinita em cada ser humano. Estas multiplicações teriam o mesmo fim: dar às ações o seu verdadeiro peso e enfatizar, com isso, a responsabilidade do homem"[9]. É o próprio Nietzsche que afirma em um de seus fragmentos: "minha doutrina diz: a tarefa consiste em viver da tal maneira que devas desejar viver de novo; tu viverás de novo de qualquer modo!" (fragmento póstumo 11[163] da primavera/ outono de 1881). A mim, não parece que esta maneira seja aquela vista em 2001. Já, a primeira interpretação, me parece mais coerente a harmonia fílmica. Evoco Scarlett Marton para explicar essa primeira interpretação.
"Ao expor a versão cosmológica de sua doutrina, Nietzsche parte, basicamente, de duas ideias: a força é finita o tempo é infinito. Assumindo-as como premissas, não chega a prová-las; na verdade, nem teria como fazê-lo. (...) Querendo-vir-a-ser-mais-forte, a força esbarra em outras, que lhe opõe resistência, mas o obstáculo constitui um estímulo. Inevitável, trava-se a luta por mais potência. Não há objetivos a atingir; por isso ela não admite trégua nem prevê termo. Insaciável, continua a exercer-se a vontade de potência. Não há finalidade a realizar; por isso ela é desprovida de caráter teleológico"[10].
2001 do começo ao fim é uma vontade de potência que esbarra em outras vontades de potência. Ciment também captou esse conflito contínuo: (...) o conflito (briga entre os macacos pelo ponto de água; competição latente entre os cientistas russos e americanos na estação espacial; luta mortal entre o computador [Hal-9000] e os astronautas; conflito de Bowman consigo mesmo antes de sua transformação final)[11].
Ainda sobre o eterno retorno vemos no filme rodas que em todo momento estão girando ao som da valsa An der schönen (sobre o belo Danúbio azul) composta por Johann Strauss II. "A ideia audaciosa de usar Danúbio azul não evoca simplesmente a música das esferas com humor eufórico, ela acrescenta uma ponta nostálgica, característica de Kubrick, a uma época em que as notas de Johann Strauss embalavam os ocupantes da roda gigante da Prater de Viena"[12].
A solidão e a ansiedade do homem moderno é uma tônica de 2001. Kierkegaard parece ter visto o filme quando escreveu: "Aventurar-se causa ansiedade, mas deixar de arriscar-se é perder a si mesmo... E aventurar-se no sentido mais elevado é precisamente tomar consciência de si próprio". Ciment avalia 2001 como um filme da solidão e ansiedade humanas elevadas as últimas consequências como veremos adiante. "O homem está então sozinho, a máquina não pode fazer nada quanto a isso. É o que mostra 2001: o homem ultrapassa o estágio animal por intermédio da tecnologia, atinge o estágio de super-homem libertando-se dessa mesma tecnologia" Foi pensando nessa solidão cósmica que Arthur C. Clarke escreveu "Às vezes penso que estamos sozinhos no universo e às vezes penso que não: em ambos os casos, essa ideia me faz vacilar".
"Na verdade, uma das armadilhas da ficção cientifica é sua frequente incapacidade de sair de uma visão antropomórfica do cosmos. Há bilhões de estrelas na galáxia e bilhões de galáxias no universo visível e um dos temas privilegiados é o das 'outras' civilizações. Mas é difícil imaginar esses mundos diferentes sem recorrer a nossas medidas humanas e assim torná-las derrisórias"[14]. Transcrevendo as palavras de Kubrick sobre a impotência do pensamento humano:
"Algumas palavras devem situar-se em um nível que o humano não pode situar. Esses seres provavelmente teriam poderes incompreensíveis. Poderiam se comunicar por telepatia através do universo inteiro. Poderiam ter a capacidade de modelar os acontecimentos de uma maneira que nos parece divina. Poderiam até mesmo representar uma espécie de consciência imortal que faça parte do universo. Quando você começa a se interessar por esse tipo de assunto, as implicações religiosas são inevitáveis, pois todas essas características são as que se atribui a Deus. Assim, aí está, se quiserem, uma definição de Deus perfeitamente científica"
(...)"pois como toda verdadeira odisseia, 2001 é uma viagem no mundo exterior que se torna uma descoberta de si mesmo. De objetivo, o relato torna-se subjetivo, a ao penetrar no centro lógico memorial de Hal 9000, Bowman começa um périplo no interior do labirinto de sua própria consciência"[16].
Apesar de não estar explícita o conceito de solidão nietzscheano no 2001, ainda assim tal conceito não pode ser ignorado. Isso fica evidente em pelo menos duas cenas: 1) quando Poole deitado sobre uma espécie de maca recebe as felicitações de aniversário de seus pais; 2) na última cena em que Bowman se encontra sozinho consigo próprio num quarto de hotel renascentista. Apesar de no último ato ficar na presença do monólito, ainda assim, não é uma companhia verdadeira. O monólito é o grande "Outro" que sempre se afasta no clímax do encontro. Talvez temos aqui uma nova representação do drama edipiano, "o monólito não seria apenas o símbolo de Deus [transcendente, intangível, o "Outro" absoluto] mas a autoridade em geral, e, portanto, o pai, que a criança sonha em assassinar para tomar seu lugar"[17]. Há ainda uma terceira cena de solidão que requer nossa atenção pela sua peculiaridade: A morte ou "assassinato" de Hal-9000. Vemos um antropopatismo maquinal. Um computador (Hal-9000) em todo o filme, tem mais sentimentos humanos que os próprios humanos. Na cena citada, Hal demonstra um "genuíno" medo de morrer. Toda morte é uma experiência solitária. Ninguém morre no lugar de outro, portanto, medo e solidão são fenômenos recorrentes na hora final. Do Cristo tendo medo no Gêtsamani ("minha alma está angustiada até a morte") ao Cristo solitário e desamparado na cruz ("Deus meu, Deus meu porque me desamparastes?") a experiência é única a todo ser vivo desde de que tenha consciência como Hal p.ex. "A morte de Hal, essa lobotomia realizada por Bowman sobre os circuitos pensantes, é uma das sequencias mais comoventes da obra de Kubrick, com as súplicas: 'Estou com medo, Dave. Meu cérebro está vazio. Sinto que se esvazia. Minha memória se vai, tenho certeza', e depois a melancólica canção de sua juventude: 'Dasy, give me your answer, do / I'm half crazy', e a voz que some lentamente, ficando cada vez mais grave, para morrer numa rouquidão interminável". Aqui o antropomorfismo é levado às últimas consequências. Evidenciamos isso através da fala do computador: "tenho medo", uma máquina pode ter medo?; "meu cérebro", não são apenas seres orgânicos que dispõe desse órgão?; "sinto", quais sistemas inorgânicos fazem com que uma máquina sinta?; por fim, vemos Hal cantando uma música que diz ter aprendido na infância, seria ele agora um adulto? Se eu não estiver enganado em todo filme aparece dois cânticos: 1) os pais de Poole cantando sem vida ou entusiasmo o "parabéns pra você"; 2) Hal cantando Dasy cheio de nostalgia e emoção ante sua hora final. A inversão segue a seguinte dialética: o animal evolui para o humano (o humano é uma negação do animal), o humano cria a máquina e esta lhe rouba sua humanidade (a máquina é uma negação do humano) - negação do humano orgânico. Na cena citada, Hal-9000 é um humano, demasiado humano.
 Sobre o apolíneo e o dionisíaco utilizarei como texto base As reflexões do jovem Nietzsche do trágico e da tragédia grega. Escrito por João Evangelista Tude de Melo Neto, compõe a segunda lição do livro 10 lições sobre Nietzsche. O motivo da escolha é justamente o caráter sistemático do texto.
como apolíneo, no contexto nietzscheano, podemos definir como o impulso natural responsável pela individuação de todos os entes que se fazem presentes na natureza; como dionisíaco entende-se uma espécie de impulso de ruptura das fronteiras individuais e, ao mesmo tempo, como movimento de aderência mística à unidade primordial do todo[19].
Nietzsche julga ter descoberto no par Apolo-Dionísio uma ferramenta muito útil para estudar o desenvolvimento da arte. Tanto assim é que, graças a ela, afirma ter resolvido o enigma da origem da tragédia. Aos seus olhos, a tragédia Ática é o milagroso resultado da fusão entre os instintos antagônicos do apolíneo e do dionisíaco[20].
Sendo o apolíneo e o dionisíaco uma chave para a compreensão da arte trágica, tomarei essa chave de empréstimo para refletir 2001.
No contexto da mitologia grega, Apolo e Dionísio, apesar de serem irmãos por parte de pai (ambos são filhos de Zeus), são caracterizados como divindades antagônicas. Na maioria das vezes, Apolo é representado como um jovem que possui corpo atlético, o qual manifesta uma beleza simetricamente harmônica. Apolo simboliza: a sobriedade, a ordem, a distância, a distinção, a visão clara, a individualidade... Apolo representa ainda a luz do Sol, a luz da razão que ilumina a obscuridade e permite ao homem distinguir o verdadeiro do falso. No longa em questão, a epifania apolínea é evidente a começar pelo Sol que aparece por mais de uma vez alinhado à Lua e a Terra derramando seu brilho sobre os astros com quem divide a imagem. A imagem do Sol alinhada coma Lua é ainda símbolo do zoroastrismo, religião persa fundada por um profeta chamado Zaratustra (histórico). O Zaratustra de Nietzsche é um profeta excêntrico que faz antagonismo ao original. O Zaratustra niezscheano é uma personagem literária na qual se cristaliza a necessidade de deixar para trás todas as ideias que esgotam a força vital. Toda tecnologia que aparece no filme a partir do segundo ato: a ciência tecnológica que levou o homem a lua, Hal-900, toda cena dialogal, Quando Poole joga xadrez com Hal, são evidências do apolíneo que louva a razão. Uma outra cena bem apolínea é quando Poole com seu corpo atlético faz seus exercícios na nave que gira, símbolo do eterno retorno. Tal qual um rato individual numa gaiola giratória assim é o dr. Poole que treina box enquanto corre. Nada mais contrastante que os outros três cientista que estão em seu sono sem sonhos no processo de criogenia. Estes são dionisíacos já que em seu sono o individual não mais existe.
O dionisíaco também salta aos olhos em vários momentos do filme. Dionísio, deus do vinho, da embriaguês e do excesso orgiástico, simboliza o fluxo contínuo da vida que constitui a natureza. Mas não apenas da vida. Melo Neto nos lembra e exemplifica que Dionísio é também o deus da morte que leva a dissolução dos indivíduos para, desse modo, promover a manutenção da totalidade vivente. Segue o exemplo: o predador devora a presa e, por consequência, destrói a vida individual desta. Todavia, a energia vital da presa continua a existir na vida do predador, até o momento em que este também é devorado, ocasião na qual o fluxo eterno da energia vital ganha continuidade em um terceiro ser vivo. Conforme esse exemplo, a morte que dissolve o indivíduo é justamente o que mantém o ciclo interminável da vida. Em suma, Dionísio é a vida perpétua do todo que se alimenta da morte das suas partes[21].
O exemplo citado acima por Melo Neto é visto algumas vezes no longa: 1) quando os macacos começam a se alimentar de carne de anta, neste caso, a morte individual da anta passa a ser a mantenedora da vida; 2) quando o leopardo se alimenta do macaco; 3) quando, para manter seu conatus vital, Hal mata os cientistas e abandona Bowman a própria sorte. Nos dois primeiros exemplos a energia vital se perpetua com a morte dos indivíduos. No último caso o exemplo é um pouco forçado já que não temos certeza se de fato Hal está mesmo vivo. O dionisíaco aparece nas sinfonias de Johann Strauss e Richard Strauss... A música é a diluição do individual sendo percussiva e inebriante. Segundo Melo Neto, Dionísio "aparece ainda, em forma de criança (...)". O feto que aparece no final do filme pode ser atribuído a simbólica dionisíaca, já que a criança, em especial o feto, não conhece a individualidade. O ciclo da transmutação se torna completo agora que o leão outrora camelo se torna criança.
O feto que aparece no fim no ato final pode ser tomado como um símbolo do Além-Homem? Sim, porém com reservas. O filme parece indicar uma lógica darwinista algo contrário ao pensamento de Nietzsche. “Uma outra raça de gado erudito acusou-me [...] de darwinismo” (EH/EH. Por que escrevo livros tão bons,§1). Não se trata de entender o homem como uma espécie biológica que poderia ser superada por meio da elevação de suas potencialidades físicas e intelectuais[22] O que deveria ser ultrapassado não é o homem biológico mas o tipo de vida humana predominante na civilização ocidental.
“Na nova cultura transvalorada, este novo homem não mais pautaria sua existência pelo além; sua referência seria a própria vida terrestre. Nesse sentido, a distinção fundamental entre o Além-do-Homem e o homem da tradição vigente está na relação que estes dois estabelecem com a vida terrena. Ao contrário do homem da civilização em vigência, que apenas suporta a vida terrena à luz da esperança de uma redenção no além, o Além-do-homem seria capaz de afirmar a existência terrena, sem precisar de nenhum consolo metafísico ou religioso”[23]
Enquanto o homem vigente é transcendentalista, vive para o além, o Além-do-homem é imanentista, vive no aquém; aceita o eterno retorno como um prêmio pois a vida terrena tem peso de eternidade.
Eu entendo que a simbólica de 2001 participa desta interpretação: o homem em busca do transcendente (o monólito que aparece na lua e posteriormente em Júpiter) acaba retornando ao imanente: o feto retorna a terra e não em um paraíso celeste. Temos a ideia do Além-do-homem que aceita retornar eternamente à vida na terra.
O próprio Nietzsche através de Zaratustra pede a fidelidade à terra:
Eis, eu vos ensino o Além-Homem.
O Além-Homem é o sentido da terra. Assim fale a vossa vontade: possa o Além-Homem tornar-se o sentido da terra. Exorto-vos, ó meus irmãos, a permanecerdes fiéis à terra, e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres[24]
Zaratustra roga os homens que permaneçam fiéis à terra. Seu discurso busca lembrá-los de que a terra é o que lhes é dado, e isto também significa aceitá-la como um limite, que simultaneamente possibilita e alimenta de vida, mas que é finito[25] .Em uma das cenas do filme, a que antecede Bowman no quarto renascentista, vemos sua nave a semelhança de um espermatozoide adentrar em uma dimensão que se assemelha a um útero feminino. Talvez seja uma interpretação forçada e libidinal aos moldes freudianos, mas é o que de fato me parece. Tanto é que depois destas coisas vemos um feto retornando à terra. Essa suposta orgia cósmica é ainda alusão ao dionisíaco e sua diluição do individual. A cena nos remete ainda a analogia de outra deusa da mitologia grega: Deméter. Também conhecida como a deusa do trigo, da fertilidade, das colheitas, Deméter vem de Gemeter, onde Ge diz gerar, e “meter”, mãe, a mãe-terra.
Der Über-Mench, o super-homem, é anunciado por Zaratustra como o sentido da terra. Ou seja, Zaratustra não ensina o super-homem como aquele que coloca acima do humano, como um ideal a ser atingido. Über significa intensificação, intensificação do humano, do que é mais próprio do homem. É desse modo que, e unicamente assim, que pode ser o sentido da terra [26].
Em suma, entendo que tanto a filosofia de Nietzsche quando o longa do Kubrick convergem em um único sentido: afirmação da vida. Encerro citando Deleuze: “Os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver. A vida activa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida[27].

*Erivan Silva é estudante de filosofia

Notas
[1] MARTON, Scarlett. Nietzsche, seus leitores e suas leituras. São Paulo. Ed Barcarolla, 2010. Pág. 22.
[2] Idém. Págs 32,33.
[3] CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick. São Paulo. Ed CosacNayf, 2013. Pág 94.
[4] NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. Rio de Janeiro. Ed Vozes. Pág 19.
[5] Idém. Pág 39.
[6] MARTON, Scarlett. Nietzsche, seus leitores e suas leituras. São Paulo. Ed Barcarolla, 2010. Pág 23.
[7] CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick. São Paulo. Ed CosacNayf, 2013. Pág 94,95.
[8] NETO, João Evangelista Tude de Melo. 10 Lições sobre Nietzsche. Rio  de Janeiro. Ed Vozes. Pág 89.
[9] MARTON, Scarlett. Extravagâncias, ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo. Ed Barcarolla, 2009. Pág 92,93.
[10] Idém. Pág 96,97.
[11] CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick. São Paulo. Ed CosacNayf, 2013. Pág 96.
[12] Idém. Pág 97.
[13] Ib idém. Pág 92.
[14] ib idém. Pág 93.
[15] CIMENT, Michel. Kubrick. São Paulo. Ed Ubu, 2017. Pág 91.
[16] CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick. São Paulo. Ed CosacNayf, 2013. Pág 96.
[17] Idém. Pág 99.
[18] Ib Idém. Pág 98.
[19] NETO, João Evangelista Tude de Melo. 10 Lições sobre Nietzsche. Rio de Janeiro. Ed Vozes. Pag 34-36.
[20] LLÁCER, Toni. Nietzsche: o super-homem e a vontade de poder. São Paulo. Ed Salvat, 2015. Pág 99.
[21] NETO, João Evangelista Tude de Melo. 10 Lições sobre Nietzsche. Rio de Janeiro. Ed Vozes. Pág 35.
[22] Idém. Pág 99.
[23] Ib Idém. Pág 101-102.
[24] NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. Rio de Janeiro. Ed Vozes. Pág 19.
[25] VIEIRA, Maria Cristina Amorim. Sobre o sentido da terra. In Leituras de Zaratustra (vários Autores). Rio de Janeiro. Ed Mauad, 2011. Pág 225.
[26] Idém. Pág 228.
[27] DELEUZE, G. Nietzsche. Portugal. Ed 70, 2014. Pág 18.



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