sexta-feira, 22 de abril de 2011

O mito do Tiradentes


No dia 21 de abril comemora-se o dia em que morreu um heroi nacional: Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), mais conhecido como Tiradentes. Muitos sequer lembram esse fato. Com o decorrer dos anos o homem se revestiu do mito. No retrato acima, ¨O Cristo Cívico¨ feito pelo pintor Décio Villares, percebe-se como a figura de Jesus Cristo serviu de modelo para o mártir mineiro. Esse retrato foi feito por encomenda dos primeiros líderes republicanos. Seu desenho serviu de inspiração para outros retratos. Veremos  um pouco da história e do símbolo por trás da história.

Um símbolo brasileiro

Não se sabe como eram as verdadeiras feições de Joaquim José da Silva Xavier. Todos os retratos são fictícios embora nenhum tenha seguido duas informações vindas de fonte segura. Durante o julgamento dos inconfidentes, Alvarenga Peixoto descrevera Tiradentes como ¨feio e espantado¨. O depoimento de frei Penaforte indicava também que, ao ser conduzido ao patíbulo, o réu estava ¨com abarba e a cabeça raspadas¨. Mas tais fatos eram adversos ao processo de mitificação do Tiradentes - foram, portanto, solenementes ignorados. Na mais brilhante análise da fabricação do mito de Tiradentes, feita por José Murilo de Carmino no livro A formação das almas - O imaginário da República no Brasil, são analizadas todas as imagens de Tiradentes e de seu martírio ( em especial os quadros Tiradentes Esquartejado, reproduzido abaixo, feito em 1893 por Pedro Américo, e Martírio de Tiradentes de Aurélio de Figueiredo ). Neles como em quase todos os demais, Tiradentes surge como um o ¨mártir ideal e imaculado na brancura de sua túnica de condenado¨. Foi assim que ele se tornou aceito como símbolo nacional tanto por monarquistas e abolicionistas como pelos republicanos. O fenômeno se repetiria nos anos 60 do século XX, quando tanto os militares como grupos revolucionários da esquerda - e até mesmo o dinâmico e rebelde Teatro de Arena - usaram-no como símbolo de liberdade e de luta. Após dois séculos, Tiradentes vive.



A Inconfidência Mineira

¨A manifestação de rebeldia mais importante ocorrida no Brasil, a partir de fins do século XVIII, foi a chamada Inconfidência Mineira (Minas Gerais, 1789). Sua importância não decorre do fato material, mas da construção simbólica de que foi objeto. O movimento teve relação direta com o agravamento dos problemas da sociedade regional naquele período. Ao mesmo tempo, seus integrantes foram influenciados pelas novas ideias que surgiam na Europa e na América do Norte. Muitos membros da elite mineira circulavam pelo mundo e estudavam na Europa¨
                                                          Boris Fausto 
                                       

 Na segunda metade do século XVIII, o declínio da produção do ouro acentuou os conflitos entre a população de Minas Gerais e as autoridades de Portugal. A ameaça da derrama ou a cobrança dos quintos atrasados criou um pretexto para a reação das elites locais

 A ala mais esclarecida, e mais endividada, decidiu agir, dando início em 1789 ao movimento que seria chamado de Inconfidência ( infidelidade) Mineira, ou Conjuração Mineira. De acordo com historiadores, segundo a versão final da devassa - a investigação levada a cabo pelas autoridades da época -, envolveram-se no movimento da Capitania das Minas grandes fazendeiros, criadores de gado, contratadores, exploradores de minas, magistrados, militares, além de intelectuais luso-brasileiros.

 Dentre os inconfidentes, destacaram-se os padres Carlos Correa de Toledo, José de Oliveira Rolim e Manuel Rodrigues da Costa, além do cônego Luís Vieira da Silva; o tenente coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, comandante militar da capitania, os coronéis Domingos de Abreu Vieira, também comerciante, e Joaquim Silvério dos Reis, rico negociante; e os letrados Cláudio Manoel da Costa, Inácio José de Alvarenga Peixoto e Tomás Antônio Gonzaga.

Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi o único ¨conspirador¨ que não fazia parte da elite. Conhecido como alferes (primeiro posto militar) e dentista prático, foi talvez por sua origem o mais duramente castigado. A memória de Tiradentes passou a ser celebrada no Brasil como a proclamação da República, quando foi considerado heroi nacional pelo regime estabelecido em 15 de novembro de 1889. Sua representação mais conhecida é muito semelhante à imagem de Cristo, reforçando a construção da imagem de mártir.

¨Joaquim José da Silva Xavier constituia, em parte, uma exeção. Desfavorecido pela morte prematura dos pais, que deixaram sete filhos, perdera suas propriedades por dívidas e tentara sem êxito o comércio. Em 1775 entrou na carreira militar, no posto de alferes, correspondente ao grau inicial do quadro de oficiais. Nas horas vagas exercia o oficio de dentista, de onde lhe veio o apelido algo depreciativo de Tiradentes¨
                                                   Boris Fausto

O projeto e a condenação

Os inconfidentes propunham a imediata emancipação da colônia e a proclamação de uma República inspirada no pensamento liberal-iluminista e na Constituição dos Estados Unidos. Defendiam a elevção de São João del-Rei à condição de capital do reino, a criação da universidade de Vila Rica e o estímulo à abertura de manufaturas têxteis e de uma siderurgia para o novo Estado. Os revoltosos não tiveram uma posição definida e unânime sobre a questão da escravidão.

A revolta deveria eclodir no dia da derrama. Ela fora programada para o ano de 1788, mas foi suspensa quando participantes da conspiração denunciaram o movimento ao governador. O delator mais conhecido foi o coronel Joaquim Silvério dos Reis, endividado com a Coroa. O governador suspendeu a cobrança e mandou prender os inconfidentes.

Assinada em 19 de abril de 1792, no Rio de Janeiro, a sentença de morte de Tiradentes cumpriu-se dois dias depois: ele foi enforcado, decapitado e esquartejado. Os outros participantes foram condenados ao desterro na África.

                                           O espírito iluminista de liberdade, igualdade e fraternidade está presente,
                                           em latim, nos dizeres herdados pela atual bandeira do estado de Minas
                                           Gerais:¨ Liberdade, ainda que tardia¨


O Mito do Tiradentes

O texto a seguir, foi tirado do livro:
Brasil: Uma História - Cinco séculos
de um país em construção. Ed Leya.
Eduardo Bueno


Tiradentes pode ter sido mero bode expiatório no trágico desfecho da Conjuração Mineira. Mas a decência com a qual se comportou ao longo do lento e tortuoso processo judicial e, acima de tudo, a altivez com que enfrentou a morte, tornaram-no, no ato, não apenas a maior figura do movimento, mas também um dos grandes heróis da história do Brasil.
Enquanto a maioria dos conjurados chorava, balbuciava e se maldizia - trocando acusações e blasfêmias diante dos jurados -, Tiradentes manteve a dignidade, o senso de camaradagem e uma tranquilidade despojada que, da mera leitura dos atos, sua presença refulge imponente e quase majestosa. Embora, de início, tenha tentado negar a existência da conspiração, tão logo as acusações se tornaram evidentes, Tiradentes tratou de atrair toda culpa sobre si, praticamente se apresendando para o martírio ao proclamar responsabilidade exclusiva para o movimento. Ao saber que, além dele, outros conjurados tinham sido condenados à morte, Tiradentes declarou: ¨Se dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria para salvá-los¨.
      Não houve, por parte dos acusados, qualquer espécie de retribuição. Com toda a confusão de seus depoimentos, nenhum nega a participação de Tiradentes nem seu entusiasmo fanático e às vezes imprudente pela revolução. Para a Coroa, o alferes também despontava como a vítima ideal: primeiro, era alguém com todos os ressentimentos de um típico ¨revolucionário francês¨. Depois, não era ninguém: ¨Quem é ele?¨, perguntava uma carta régia enviada de Lisboa ao desembargador Torres, juiz do processo. ¨Não é pessoa que tenha figura, nem valimento nem riqueza¨, foi a resposta. Além do mais, quem levaria a sério um movimento chefiado por um simples Tiradentes? Enforcá-lo, portanto, teria o efeito máximo como advertência e o mínimo como repercussão.
     Mas os caminhos da história escolheram outras vias e, um século depois, Tiradentes seria transformado no grande síbolo de República - independentemente do papel que tivesse desempenhado na Conjuração. Por anos a fio, a história da revolta subsistira apenas na memória popular. A partir de 1873, e até 1893, a literatura e a historiografia começaram a transformar Tiradentes numa espécie de Cristo cívico. Ele renascera um pouco antes - no livro Brasil Pitoresco, escrito em 1859 pelo francês Charles Ribeyrolles, na figura de um herói republicano ¨que se sacrifica por uma ideia¨. Em 1873, porém, o historiador Joaquim Noberto de Souza lançou sua História da Conjuração Mineira. Descobridor dos Autos da Devassa, ele foi o primeiro a consultá-los. Após treze anos de pesquisa, concluiu que o papel do Tiradentes fora secundário e que, por causa da ¨lavagem cerebral¨ a que o teriam submetido na prisão dos frades franciscanos, substituíra o ardor patriótico pelo fervor religioso. ¨Prenderam um patriota, executaram um frade¨. Os republicanos, já tentaram alçar Tiradentes ao papel de símbolo do regime que estava para nascer, protestaram. Negavam ter Tiradentes beijado as mãos e os pés do carrasco; não aceitavam a versão de que ele se dirigira à forca com um crucifixo; não acreditavam que tivesse dito que, como Cristo, também morreria nú. Mas o fato é que as semelhanças entre a paixão de Cristo e o martírio de Tiradentes eram tão evidentes (não faltavam nem Judas nem Pedros - e, agora, nem a ressurreição) que,  depois de estabelecida a República, até mesmo os pintores ligados ou contratados por ela passaram a representar Tiradentes como se fosse Jesus no patíbulo.
      Com a passagem dos anos, a memória e as imagens de Tiradentes continuariam sendo esquartejadas.


Romance LX ou Do caminho da forca

Tudo leva nos seus olhos,
nos seus olhos espantados,
o Alferes que vai passando
para o imenso cadafalso,
onde morrerá sozinho
por todos os condenados.

Trecho do livro: Romanceiro da Inconfidência
Cecília Meireles

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