quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Escatologia e esperança


"Como pode existir uma teologia sistemática
(escatologia) que trata do futuro se este
ainda não existe?
Não seria um absurdo estudar
o inexistente?
Então mudemos o termo de 'doutrina
das últimas coisas' para 'doutrina do que
não existe', ou 'teologia da especulação', ou
do 'eu penso que vai ser assim'. poupem-nos os
escathófilos de tamanha asneira"
                                                        Erivan 2011

Segue um texto, abaixo, do teólogo europeu Jugen Moltmann. Moltmann expõe de maneira brilhante aquilo que penso ser escatologia. O escrito se encontra no livro "Teologia da esperança", e é justamente essa a proposta do autor: mostrar uma escatologia enraizada na esperança.
Boa leitura!




Qual é o Logos da escatologia cristã?

Por muito tempo, a escatologia era a "doutrina das últimas coisas", ou "a doutrina do eschaton". A compreensão "últimas coisas" englobava eventos, sobre o mundo, a história e a humanidade, que irromperiam no fim dos tempos. Entre esse acontecimentos estava a volta de Cristo em glória, o juízo universal e a consumação de reino, a ressurreição universal dos mortos e a nova criação de todas as coisas. Esses acontecimentos finais irromperiam de fora da história para dentro dela e poriam fim a história universal, na qual tudo se move e se agita. Mas, como esses acontecimentos foram adiados até o "último dia", eles, no decorrer da história, perderam sua significação orientadora, animadora e crítica para os tempos vividos antes do fim. Dessa forma, as doutrinas sobre o fim último vegetavam esterilmente nas últimas páginas da dogmática cristã. Eram como que um apêndice meio solto, que definhava em sua insignificância apócrifa. Não tinham nenhuma relação com os ensinamentos sobre a Cruz e a ressurreição, a exaltação e o senhorio de Cristo, nem eram consequências necessárias delas. Estavam tão longe delas, como uma pregação no dia de Finados está da Páscoa. À medida que o cristianismo se tornou uma organização herdeira da religião do Estado romano e, teimosamente, reivindicava para si as atribuições e pretensões do mesmo, a escatologia foi deixada, juntamente com sua eficácia mobilizadora e revolucionária da história agora vivida, às seitas entusiastas e fanáticas e aos grupos revolucionários. Enquanto a fé cristã separava de sua vida diária a esperança do futuro, esperança essa que a sustentara no princípio, e transferia o futuro para o além ou para a eternidade - apesar dos textos bíblicos que ela transmitia regurgitar a esperança messiânica futura para a terra -, a esperança aos poucos abandonou a igreja e reiteradamente se voltou contra ela nas formas mais deturpadas possíveis.

 Na realidade, a escatologia é idêntica à doutrino da esperança cristã, que abrange tanto aquilo que se espera como o ato de esperar, suscitado por esse objeto. O cristianismo é total e visceralmente escatologia, e não só como apêndice; ele é perspectiva, e tendência para frente, e, por isso mesmo, renovação e transformação do presente. O escatológico não é algo que se adiciona ao cristianismo, mas é simplesmente o meio em que se move a fé cristã, aquilo que dá o tom a tudo que há nele, as cores da aurora de um novo dia esperado que tingem tudo o que existe. De fato a fé cristã vive da ressurreição do Cristo crucificado e se estende em direção às promessas do retorno universal e glorioso de Cristo. Escatologia é "paixão" em dois sentidos, o de sofrimento e o de tendência apaixonada, que tem sua fonte no Messias. Por isso mesmo,  a escatologia não pode ser simplesmente parte da doutrina cristã. Ao contrário, toda pregação e mensagens cristãs têm uma orientação escatológica, a qual também é essencial à existência cristã e à totalidade da igreja. Por isso, existe um único verdadeiro problema da teologia cristã, proposto pelo seu próprio fim e, por meio dele, proposto à humanidade e à reflexão humana: o problema do futuro. Com efeito, aquilo que encontramos nos testamentos bíblicos como objeto de esperança é o "Outro", algo que não podemos pensar nem imaginar a partir das experiências que já tivemos e da realidade dada. Algo que, no entanto, nos é apresentado como promessa de algo "novo", o objeto de esperança que está no futuro de Deus. O Deus, de que aí se fala, não é o Deus intramundano ou extramundano, mas o "Deus da esperança" (Rm15.13); o Deus que tem o "futuro como propriedade do ser" (E. Bloch), tal como se apresenta no êxodo e nos profetas de Israel; o Deus que não podemos ter em nós, que vêm ao nosso encontro em suas promessas do futuro, a quem, por isto mesmo, não podemos "possuir", mas só ativamente aguardar em esperança. Por conseguinte, a teologia correta deve ser pensada a partir de sua meta futura. A escatologia não deve ser seu fim, mas seu princípio.

  Mas como falar de um futuro que ainda não existe e de acontecimentos vindouros aos quais ninguém ainda assistiu? Não se trataria aí de sonhos, especulações, desejos e temores, todos necessariamente permanecendo vagos e indefinidos, já que ninguém pode verificá-los?

A expressão "escato-logia" é falsa. Uma "doutrina" sobre as últimas coisas não pode existir, se como "doutrina" se entende uma coleção de afirmações doutrinárias que se conhecem a partir de experiências que podem ser repetidas e feitas por todos. O termo grego lógos se refere a uma realidade que está aí, que existe sempre e que pode ser conhecida como verdade na palavra que lhe corresponde. Nesse sentido, não é possível haver lógos do futuro, a não ser que o futuro seja a continuação ou o retorno periódico e regular do presente. Mas se o futuro traz algo de surpreendente e novo, sobre ele nada podemos afirmar, nem conhecer sobre ele qualquer coisa que tenha sentido, pois a verdade "lógica" (verdade com lógos) não pode existir no que acontece no futuro como novo, mas tão somente naquilo que é permanente e retorna regularmente. Aristóteles chega até a chamar a esperança de "sonho de quem está acordado", mas para os gregos ela é um dos males que sai da caixa de Pandora.

 Como pode a escatologia cristã falar do futuro? A escatologia cristã não fala do futuro de modo geral. Ela toma seu ponto de partida em uma determinada realidade histórica e prediz o futuro da mesma, suas possibilidades futuras e sua eficácia futura. A escatologia cristã fala de Jesus e de seu futuro. Conhece a realidade da ressurreição de Jesus e anuncia o futuro do ressuscitado. Por isso, para ela, a fundamentação de todas as afirmações sobre o futuro na pessoa e na história de Jesus Cristo é a pedra de toque para todos os espíritos escatológicos e utópicos.

Ora, se o Cristo crucificado tem um futuro em razão da ressurreição, isso significa também que todas as afirmações e juízos sobre ele necessariamente afirmam algo sobre o futuro em que deve ser esperado. Por conseguinte, a maneira como a teologia cristã fala sobre Cristo não pode ser a do  lógos grego ou das afirmações doutrinárias a partir da experiência, mas a das sentenças e afirmações da esperança e das promessas do futuro. Todos os títulos e predicados de Cristo não somente afirmam o que ele foi e é, mas implicam também afirmações sobre aquilo que ele será e sobre o que dele s espera. Todos eles afirmam: "Ele é a nossa esperança" (Cl 1.27). Pelo fato de afirmar o seu futuro como promessa para o mundo, eles orientam a fé que nele se tem para esperança de seu futuro ainda ausente. As afirmações esperançosas da promessa se antecipam ao futuro. Nas promessas está anunciado o futuro oculto, o qual, por meio da esperança que desperta, age no presente.

 As afirmações doutrinárias encontram sua verdade na correspondência, verificável, com a realidade presente experimentável. As afirmações da esperança estão necessariamente em contradição com a realidade presente e experimentável. Elas não resultam de experiências, mas constituem uma condição para que sejam possíveis novas experiências. Não pretendem iluminar a realidade que aí está, mas a realidade que virá. Não querem produzir no espírito uma imagem da realidade atual, mas levar a realidade atual a transformar-se naquilo que está prometido e é esperado. Não querem ser os caudatários da realidade, mas os portadores do fogo olímpico, em direção ao futuro. Assim, elas tornam históricas a realidade. E se a realidade é percebida como história, deve-se perguntar com J. Hamann: " Quem pode ter conceitos corretos sobre o presente, sem conhecer o futuro?"

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