segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Secularização

 Todas as democracias modernas praticam a separação entre a religião e o Estado, de acordo com um marco institucional e jurídico variável. Mas, paralelamente, outro fenômeno tocou diretamente as religiões nos tempos modernos: a secularização da sociedade. Iniciada no século XIX, ela poderia ser comparada a "uma trabalho de sapa" contínuo até nossos dias, só que essa expressão implica uma vontade maléfica que na realidade está ausente da ideia de secularização. Esta significa que, com os tempos modernos, acabou-se a grande integração entre sociedade e religião, que domina em todas as sociedades tradicionais. No Ocidente, esse tempo em que a vida cotidiana, em seus atos e em sua linguagem, era por assim dizer posta sob o Sinal da Cruz, em que o poder era "de direito divino", em que os saberes eram exercidos sob a autoridade e o controle da teologia, chama-se "cristandade". Mas em outros lugares, em particular nas regiões muçulmanas, as interações e as interpretações não eram menos fortes; é possível até que a confusão entre o religioso e o político tenha sido mais substancial ainda nas sociedades muçulmanas do que na Europa cristã.

A secularização significa a ruptura dessa unidade ou dessa confusão. Um depois do outro, os marcos sociais, partes inteiras da vida cotidiana (economia, política, cultura, saúde e vida social, direito...) subtraem-se mais ou menos brutalmente, ou silenciosamente, do domínio - ou do império - da religião, constituindo esferas autônomas, "secularizadas", com um saber e práticas cada vez mais especializados. Não é uma opção antirreligiosa, é uma necessidade para passar a modernidade, e muitas vezes o processo ocorre - ainda hoje - sem que os atores se deem verdadeiramente conta de que passam para um universo secularizado: eles simplesmente necessitam dessa autonomia para preservar seu modo de existência.

 Assim, não se deve confundir a secularização com um mundo ou uma cultura "sem Deus" ou, a fortiori, "contra Deus": nos países secularizados, numerosos indivíduos podem continuar perfeitamente a ser crentes, aderir a comunidades, realizar suas assembleias e celebrar sua fé. Mas os lugares em que vivem e, principalmente, trabalham "funcionam" sem Deus, sem sinais visíveis de sua presença e sem recurso a seu nome - mas com diferenças notáveis conforme as regiões e os países: na Europa e, em particular, na França, sem ser explicitamente proibidos, esses sinais e esses recursos em público parecem no mínimo incoerentes e inadequados, mas isso é muito menos verdade nos Estados Unidos. No entanto,, globalmente, pode-se falar de cultura ou de mundo que se desenvolvem "fora de Deus", "como se Deus não existisse", nem a favor dele nem contra ele, mas na indiferença em relação a ele - e, para espíritos religiosos, essa situação é talvez mais insuportável que uma oposição à sua crença.

 Para uma boa compreensão desse tema da secularização, convém notar que o vocabulário não está claramente fixado. Para evocar a "secularização", alguns empregam o termo "laicização", ou mesmo "laicidade" (e "laico" ou "leigo" no lugar de "secularizado"). A meu ver, é melhor falar de "laicidade" para designar o marco jurídico da separação entre religião e Estado, e eventualmente de "laicização" para qualificar esse processo, ou a vontade de impô-lo quando ele ainda não vigora. Outros falam de "secularismo" em vez de "secularização", dando assim de saída uma nuance voluntarista e pejorativa à evolução das sociedades modernas no sentido da secularização. Mas, como disse, esse voluntarismo para suprimir a religião esteve em geral ausente do movimento no sentido da secularização. Ele existiu na França durante a Revolução, ou também no regime comunista do bloco soviético, em particular na Rússia comunista; e evidentemente teve efeitos destruidores, sem nunca chegar a extirpar definitivamente a religião, ou mesmo impedir sua vitalidade

Enfim, certos autores preferem evitar a palavra "secularização", porque ela sugere que a sociedade atual se tornou moderna separando-se, decerto, "da" religião, mas também "tendo como um fundo de" religião. Em outras palavras, certas formas aparentemente profanas das sociedades ocidentais - o individualismo, a separação entre a igreja e o Estado, os direitos humanos... - não seriam, hoje, nada mais que valores cristãos e/ou judaicos secularizados, tornados profanos. E portanto, de um lado, a modernidade não teria sido verdadeiramente criadora, inventora de rupturas e de novidades; de outro, ela seria assim tão profundamente ligada à história do Ocidente que a possibilidade para outros povos, que não os ocidentais, de ter acesso a ela deveria ser posta em dúvida. É impossível ir muito longe aqui nesse debate tão complexo. Digamos brevemente que, muito embora pareça difícil recusar sem mais a tese da secularização e considerar o advento da modernidade um fenômeno totalmente em ruptura com o que precede, sem raízes no passado ocidental, não vemos porque a história estaria escrita e excluiria definitivamente outras culturas do processo de modernização.


Bibliografia:
SCHLEGEL, Jean-Louis - A lei de Deus contra a liberdade dos homens Ed. Martins Fontes

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