domingo, 13 de novembro de 2011

"Pensar é estar doente do corpo"*

 

Por Rubem Alves (1)


 Fernando Pessoa dizia que "pensar é estar doente dos olhos". No que eu concordo. E até amplio um pouco:"Pensar é estar doente do corpo". O pensamento marca o lugar da enfermidade. Ah! você duvida. O meu palpite é que, neste preciso momento, você não deva estar tendo pensamentos sobre seus dentes, a menos que um deles esteja doendo. Quando os dentes estão bons, não pensamos neles. Como se eles não existissem. O mesmo com os olhos. Você só tomará consciência deles se estiver com problemas oculares, miopia ou outras atrapalhações. Quando os olhos estão bem a gente não pensa neles: eles se tornam transparentes, invisíveis, desconhecidos, e através de sua absoluta transparência e invisibilidade o mundo aparece. O corpo inteiro é assim. Quando está bom, sem pedras no sapato, sem cálculos renais ou hemorroidas, sem taquicardias ou enxaquecas, ele fica também transparente, e a gente se coloca inteiramente, não nele, mas na coisa de fora: o caqui, a árvore, o poema, o corpo do outro, a música. Quando o corpo está bem, ele não conhece. Claro que tem pensamentos; mas são pensamentos de outro tipo, de puro gozo, expressivos de uma harmonia que não deve ser perturbada por nenhuma atividade epistemológica.

  Mas basta aparecer a dor para que tudo se altere. A dor indica que um problema apareceu. A vida não vai bem. É aquela perturbação estomacal, mal-estar terrível, vontade de vomitar, e vem logo a pergunta: "Que foi que comi? Será que bebi demais? Ou teria sido a linguiça frita? Pode ser, também, que tudo tenha sido provocado por quela contrariedade que tive...". Essas perguntas que fazemos, diante de um problema, são aquilo que, na linguagem científica, recebe o nome de hipóteses. Hipóteses é o conjunto de peças imaginárias de um quebra-cabeça, que acrescentamos àquela que já temos em mãos com o propósito de compreendê-la. Compreender, evidentemente, para evitar que o incômodo se repita. Pensar para não sofrer. Deve haver, no universo, milhões e milhões de situações que nunca passaram pela nossa cabeça: nunca tomamos consciência delas, nunca as conhecemos. É que elas nunca nos incomodaram, não perturbaram o corpo, não lhe produziram dor. Só conhecemos aquilo que incomoda. Não, não estou dizendo toda a verdade. Não é só da dor. Do prazer também. Você vai almoçar numa casa e lá lhe oferecem um prato divino, que dá ao seu corpo sensações novas de gosto e olfato. Vem logo a ideia: "Que bom seria se, de vez em quando, eu pudesse renovar este prazer. E, infelizmente, não posso pedir para continuar a ser convidado". Usamos então a fórmula clássica: "Que delícia: quero a receita...". Traduzindo para os nossos propósitos: "Quero possuir um conhecimento que me possibilite repetir um prazer já tido". O conhecimento tem sempre o caráter de receita culinária. Uma receita tem função de permitir a repetição de uma experiência de prazer. Mas quem pede a repetição não é o intelecto. É o corpo. Na verdade, o intelecto puro odeia a repetição. Está sempre atrás de novidades. Uma vez de posse de um determinado conhecimento, ele não fica repassando e repassando. "Já sei", ele diz, e prossegue para coisas diferentes. Com o corpo acontece o contrário. Ele não recusa o copo de vinho, dizendo que daquele já bebeu, nem se recusa a ouvir uma música, dizendo que já a ouviu antes, nem rejeita fazer amor, sob a alegação de já ter feito uma vez. Uma vez só não chega. O corpo trabalha em cima da lógica do prazer. E, do ponto de vista do prazer, o que é bom tem de ser repetido, INDEFINIDAMENTE.


*O título original do autor é: Ciência, coisa boa...
É o primeiro capítulo do livro Introdução às Ciências Sociais.
Ed. Papirus 

(1) Filósofo, educador, doutor em filosofia pela universidade de Princeton (New Jersey),
professor da Faculdade de Educação da Unicamp, autor de vários livros.

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